Heloísa Santos: «Só 3 a 5 por cento dos cancros são genéticos»

«Nos restantes casos, pode haver predisposição familiar, as características genéticas não são indiferentes, mas o cancro pode não surgir se tivermos um estilo de vida que não seja desencadeante. É um jogo que devemos saber jogar», explica a médica geneticista Heloísa Santos.

  • PorBárbara BettencourtJornalista
  • FotografiaArtur

  • Entrevista aDra. Heloísa SantosMédica geneticista, coautora do livro Genética para Todos (Gradiva)

O modo como a transmissão das características genéticas ocorre foi decifrado há apenas 65 anos e grande parte do genoma humano tem funções ainda não conhecidas. Hoje já há certezas de que o estilo de vida pode influenciar a herança genética e, graças à engenharia molecular, curar vários tipos de cancro ou sermos mais inteligentes serão cenários possíveis em pouco tempo. A médica geneticista Heloísa Santos – coautora do livro Genética para Todos (Gradiva) – levanta o véu sobre o que está para vir.

Grande entrevista a Heloísa Santos, médica geneticista

«Se mantivermos um estilo de vida saudável, temos menor risco de que as predisposições genéticas se concretizem e que as doenças surjam ou surjam mais precocemente»

Qual é o peso dos nossos genes na saúde?

É determinante, desde a conceção até ao momento da morte. Não são a única influência, já que o meio pode, em determinadas circunstâncias, ser preponderante tanto no sentido negativo, como no sentido positivo. Contudo, podemos afirmar que os genes nos protegem ou predispõem o aparecimento, modelação e manutenção da maioria das (nossas) doenças.

Entre a genética e o meio, qual é mais preponderante?

Depende do tipo de doença. Nas raras doenças monogénicas ou mendelianas, estas surgem devido a um ou dois genes alterados transmitidos pelos progenitores, pelo que são de causa genética. É o caso do cancro hereditário da mama ou da fibrose quística. As anomalias cromossómicas também são causadas por alterações genéticas – como a trissomia 21 – e são muito raras. Porém, a grande maioria das doenças comuns são multifatoriais. Nestas últimas, embora genes presentes possam, ou não, predispor o aparecimento duma patologia, as causas desencadeantes estão associadas às características do estilo de vida dos futuros doentes, como na diabetes tipo II, na maioria das doenças cardiovasculares e cancros.

São poucos os cancros de origem genética?

Só três a cinco por cento são genéticos. Nos restantes casos, pode haver predisposição familiar, as características genéticas não são indiferentes, mas o cancro pode não surgir se tivermos um estilo de vida que não seja desencadeante. É um jogo que devemos saber jogar.

Podemos dizer que somos responsáveis por manter uma boa “saúde genética” através do estilo de vida?

Não, mas, se mantivermos um estilo de vida saudável, temos menor risco de que as predisposições genéticas se concretizem e que as doenças surjam ou surjam mais precocemente.

Há outra área em que se fala em ambiente e genes, a epigenética, que estuda a forma como o ambiente pode influenciar a expressão dos genes…

Está demonstrado que, nalgumas variações ambientais, os genes, sem sofrerem alterações na estrutura do ADN, têm alterações de função devido a modificações externas (principalmente metilação) que impedem a sua expressão normal e que são transmissíveis às gerações seguintes, mas ainda é difícil compreendermos muitos mecanismos de causa-efeito. Há alguns anos, demonstrou- -se que rapazes cujos avós paternos tinham passado fome tinham maior resiliência/longevidade do que os restantes e foi afirmada a relação com variações epigenéticas protetoras. Uma demonstração da influência do meio ambiente é o facto de os portugueses, mantendo as mesmas características genéticas que os seus pais e avós, se terem tornado mais altos, o que se deve a causas ambientais mais favoráveis, como a melhoria da alimentação e restante estilo de vida em criança.

A terapêutica genética de cancros está hoje muito em voga. O que pensa sobre a investigação nessa área?

É inegável que tem vantagens, embora não tantas como as pessoas idealizam. É, principalmente, uma terapia complementar. O facto de conhecermos melhor as características genéticas destas doenças e das respetivas mutações permite realizar mais adequadas terapias e o prognóstico é melhorado. É uma área com muito potencial como complemento às terapêuticas convencionais, e também se conseguem eliminar muitas reações adversas aos medicamentos oncológicos.

Quais as pesquisas em curso mais entusiasmantes sobre as aplicações do estudo do genoma?

A capacidade de análise minuciosa do genoma, associada aos estudos do genoma em grandes populações, é promissora. Por outro lado, com os novos métodos de edição do genoma conseguem-se provocar alterações genómicas específicas a partir de diferentes fases do desenvolvimento do embrião e verificar o seu efeito e, no futuro, conhecendo-as melhor, poderemos eliminar mutações causadoras de muitas situações genéticas adversas. Os resultados de todas estas investigações são cumulativos e, muitas vezes, interligados e as suas aplicações práticas irão surgir nos próximos anos.

Já foram identificadas 5 mil doenças genéticas monogénicas 

A descodificação do genoma abriu um novo mundo no que toca aos testes genéticos. O que são?

Até há pouco tempo, tínhamos testes de diagnóstico que permitiam confirmar uma doença pesquisando as mutações associadas, mas apenas uma de cada vez. Hoje, conseguimos analisar várias mutações ao mesmo tempo, fazer análises parciais do genoma (sobretudo do exoma, a parte nobre onde se costumam concentrar as principais mutações que originam doenças) e até do genoma na totalidade. Com isto, fica mais fácil descobrir mais precocemente doenças raras causadas por mutações dum só gene, anomalias de cromossomas e variações familiares ou que, em conjunto, nos predispõem para doenças comuns.

Quais os problemas éticos destes testes?

Os estudos de “nova geração” identificam, devido ao método de realização, outras alterações do genoma além das que se pesquisam para identificar uma doença. São variações associadas a outras doenças ainda sem manifestações clínicas. Podem-se encontrar informações associadas a doenças genéticas que ainda não surgiram, como alguns tipos de Alzheimer ou doenças neurológicas tardias, com ou sem cura. Também se encontram variações de significado desconhecido ou associadas a maior predisposição para doenças comuns. Por isso são testes em que os utilizadores devem ser previamente inquiridos sobre as informações que pretendem saber ou não saber. Em Portugal, fazemos habitualmente estudos do genoma no âmbito de pesquisas relacionadas com uma patologia já existente.

Os testes disponíveis na Internet também fornecem toda essa informação?

Muitas firmas que vendem testes genómicos pela Internet não são idóneas. A interpretação das variações é complexa e o resultado pode variar de empresa para empresa. A possibilidade de os clientes receberem, sem aconselhamento adequado e sem preparação, informações sobre a existência de doenças genéticas, inclusive sem cura, ou informações falsas constitui um evidente problema ético. Outro grave problema é que, quando entram em falência, muitas vendem o material biológico dos seus clientes, que não é anónimo, a multinacionais farmacêuticas.

A percentagem de variação no genoma humano que diferencia uma pessoa de outra é de apenas 0,1 por cento, indica Heloísa Santos

Já há bancos de dados com informação genética de milhões de pessoas geridos por empresas particulares…

Na Islândia e Reino Unido, o estudo do genoma de grandes amostras da respetiva população obteve autorização parlamentar. Os dadores dão previamente o seu consentimento. Grande parte destes estudos são realizados por empresas privadas e pagos a preços fabulosos por multinacionais farmacêuticas porque retiram informações determinantes para novas terapêuticas. Daí o grande interesse em incrementá-las. No Ruanda, a população está a ser obrigada pelo governo a dar sangue para a realização do estudo do genoma, justificando ser indispensável para o apoio à saúde. O estudo do genoma em grande escala (Big Data) tem muito interesse científico, mas há que salvaguardar os direitos individuais.

Foi em 1990 que se iniciou o estudo sistematizado do ADN, que constitui o genoma humano. Desde então, o Human Genome Project realizou a sua sequenciação progressiva

Refere potenciais cenários negros relacionados com a evolução da genómica, da robótica e informática…

Klaus Schwab, presidente do Fórum Económico Mundial, considera que estamos à beira da Quarta Revolução Industrial e traça um cenário na saúde no qual todos os cidadãos têm o estudo do seu genoma e os outros dados clínicos introduzidos em sistemas informáticos. Em caso de doença, em vez de consultar o médico, iremos interagir, através do telemóvel ou computador, com um sistema informático que realiza o diagnóstico e a terapêutica baseado apenas nesse prévio registo e interpretado por algoritmos. É o fim do ato médico clássico e tem perigos. O apoio humano e psicológico ao doente, essencial, tenderá a desaparecer. Colocam-se ainda questões ligadas à confidencialidade do acesso aos dados de saúde e sobre o que acontecerá quando o sistema falhar.

Quem assumirá a responsabilidade em situações cujo diagnóstico por algoritmo estava errado ou foi mal interpretado?

Esta modificação total do apoio à saúde está já a ser preparada por equipas constituídas por membros de grandes empresas informáticas (Google, Facebook, Amazon, IBM e outras). E arriscamo-nos a situações piores, como, numa nova visão de saúde pública, e com o principal objetivo de baixar gastos individuais desnecessários, serem retiradas conclusões preditivas acerca dos riscos de saúde que as pessoas teoricamente irão posteriormente enfrentar e criada regulamentação rígida para as impedir de desenvolver futuras doenças. Este tipo de exemplos encontra-se em recentes artigos internacionais, nomeadamente a proibição de fumar sob pena de retirada de seguros e, na existência de um colesterol elevado, não serem vendidos certos produtos alimentares. E põem-se em causa os princípios de autonomia e da privacidade dada a divulgação das informações ser global. A edição do genoma também já foi classificada por um anterior representante dos serviços secretos americanos como arma de destruição maciça! Além da educação de técnicos e da população para esta revolução dos costumes, deverá haver discussão pública e a criação de associações de cidadãos para se analisarem estes novos cenários e proteger os cidadãos de previsíveis exageros, à semelhança do que já ocorre com questões ambientais. Também será necessário que se crie prévia regulamentação ética e legislação. Por tudo isto, considero inadequado a precoce introdução em Portugal, como rotina na clínica e em nome duma medicina personalizada, do estudo individual do genoma em pessoas saudáveis, uma vez que a sua interpretação ainda não é suficientemente objetiva.

Quando armazenado digitalmente, o genoma humano ocupa 200 GB

Quais são os países que estão mais avançados?

Inglaterra, China e EUA. Porém, na China, já surgiram problemas pela falta de controlo ético. Um cientista chinês, He Jiankui, anunciou, em 2018, ter realizado uma alteração do genoma a duas gémeas para impedir a ação dum gene (CCR5) com o objetivo de as tornar resistentes ao vírus da sida que os pais possuíam. Porque as técnicas atuais de edição do genoma produzem incontroláveis efeitos colaterais ainda não é aceite utilizarem- -se na clínica e estas duas meninas estão em risco de revelar graves complicações. No Reino Unido, estão a levantar-se problemas na prometida realização gratuita de estudos genómicos a toda a população no serviço nacional de saúde e hoje os governantes só asseguram a sua realização se o estudo genómico pretender identificar doenças bem definidas, salvo se os utentes interessados no estudo o pretenderem pagar, incluindo aqueles que já tinham participado em estudos alargados e fornecido o ADN para investigação com esta promessa.Aguardam-se notáveis avanços, pelo que melhor regulamentação ética e técnico-científica deverá ser rapidamente introduzida.

A morte está programada no genoma?

Há uma progressão biológica para o fim, mas não um deadline. Prova disso é que temos vindo a aumentar a longevidade. Um dos fenómenos relacionados com o envelhecimento é a oxidação, nomeadamente das mitocôndrias, associadas a processos respiratórios celulares. A dada altura, há uma oxidação que intoxica as células e isso vai aumentando com os anos. O sonho dos investigadores é alterar este mecanismo, mas ainda estamos longe.


Estudo dos genomas europeus: prós e contras

Em 2018, Portugal assinou uma Declaração proposta pelo Digital Single Market, empresa ligada à União Europeia, «que autoriza a circulação e utilização de dados genómicos de portugueses para se fazer a sequenciação completa de um milhão de genomas europeus até 2022», conta Heloísa Santos à Revista Prevenir.

Portugal assinou um acordo de cooperação genómica com 17 países, o ano passado. Em que consiste?

«Teoricamente, o objetivo é fazerem-se estudos aprofundados para prevenção das doenças e melhor terapêutica personalizada na Europa. Mas vários países recusaram entrar, como França, Alemanha, Bélgica ou Dinamarca, pelo que estes dados não vão representar as características genómicas da Europa. Dos 17 países que já assinaram, apenas uma minoria terá condições para realizar diretamente os estudos. Os outros não vão conseguir controlar o destino dos dados genómicos da sua população. É o caso de Portugal», refere Heloísa Santos.

Que implicações prevê?

«Os dados dos portugueses que sejam introduzidos nestes estudos, que deverão ser acompanhados do prévio consentimento informado, serão usados além-fronteiras, num processo cujos benefícios para os dadores e para o nosso País não creio que tenham sido previamente assegurados. Dado o interesse da indústria farmacêutica, esta informação irá provavelmente render lucros astronómicos. Não sabemos quais as empresas comerciais ligadas a este projeto e o que pretendem. Ao contrário de outros países, a divulgação desta declaração passou despercebida e não existiu uma discussão pública. Devemos pedir esclarecimentos sobre a evolução do projeto, que nos envolve a todos», defende Heloísa Santos.

O genoma «é a totalidade do material genético existente em cada pessoa. Encontra-se no interior das células, mais especificamente nos cromossomas, e é constituído pelo ADN», explica Heloísa Santos

Genético e hereditário: Heloísa Santos explca a diferença

«Nem todas as doenças genéticas são herdadas (algumas podem aparecer sem antecedentes familiares), mas todas as doenças hereditárias são genéticas. A maioria das doenças raras são exclusivamente de causa genética, ao contrário das doenças comuns em que há uma associação entre a predisposição genética individual e o ambiente/ estilo de vida como causa desencadeante.»


A doença genética é sempre grave?

«Associa-se muito as doenças genéticas, sobretudo pediátricas, a doenças muito graves e não é forçosamente assim. Vi crianças com prognósticos reservados e até anomalias cromossómicas crescerem, casarem e terem filhos. As crianças são muito mais resilientes do que acreditamos e nem todas as doenças genéticas são muito graves», explica Heloísa Santos à Revista Prevenir.

Última revisão: Junho 2019

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