António Vaz Carneiro: «Estamos à beira de uma revolução na medicina»

Grande entrevista: António Vaz Carneiro, diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseados na Evidência

Graças ao conhecimento científico atual, é possível responder a 80 por cento das perguntas clínicas em menos de 90 segundos, conta-nos António Vaz Carneiro, pai da medicina baseada na evidência em Portugal e presidente do Conselho Científico do Instituto de Saúde Baseada na Evidência. Produzir ciência que ajude médicos e doentes a tomar decisões mais informadas é o seu objetivo.

  • PorCarmen SilvaJornalista
  • FotografiaArtur

  • Entrevista aProfessor Doutor António Vaz Carneiro
    Médico especialista em Medicina Interna, Nefrologia e Farmacologia Clínica, professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseados na Evidência (CEMBE), Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública, Instituto de Saúde Ambiental e do Instituto de Formação Avançada, presidente do Conselho Científico do Instituto de Saúde Baseada na Evidência

Foi na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa que o médico, professor e investigador António Vaz Carneiro recebeu a Revista Prevenir para esta conversa. Foi lá que nasceu, há 20 anos, o Centro de Estudos de Medicina Baseados na Evidência, dirigido pelo nosso entrevistado desde o primeiro dia. E é também lá que está a nascer um novo projeto, também pela sua mão — o Instituto de Saúde Baseada na Evidência (ISBE). Um dos grandes focos do ISBE é fazer investigação, com e para doentes, que produza conhecimento fundamental para o desenvolvimento de uma nova era da medicina – a medicina de precisão – que vai transformar os cuidados de saúde e melhorar a vida dos pacientes.

Grande entrevista: António Vaz Carneiro, diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseados na Evidência

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«A prática clínica vai-se alterar nos próximos cinco a dez anos, não tanto porque vai aparecer tecnologia nova (muita já existe), mas porque vamos ser capazes de tratar mais individualmente cada doente»

O que é exatamente a medicina baseada na evidência?

A medicina baseada na evidência (MBE), que nasceu há 25 anos, consiste na utilização explícita e transparente da melhor evidência científica para a tomada de decisões.

Como “funciona” na prática?

Primeiro, é necessário construir uma pergunta: “Qual é o tratamento de primeira linha para um doente diabético?”, “Qual é o teste que devo pedir se suspeito que o doente tem artrite reumatoide”, “Que exame peço a um fumador com cancro no pulmão?”. Estas são perguntas que não podem ser respondidas intuitivamente, mas sim através de grandes estudos que determinaram o que é que se faz em cada um dos casos. Depois de formulada, a pergunta é inserida na caixa de pesquisa dos chamados software evidence based, que integra uma base de dados de bibliografia médica com milhões de artigos científicos. Perante as respostas dadas pelo software, o médico escolhe a que lhe parecer mais indicada para o doente em questão porque a decisão clínica é sempre sua.

Os médicos portugueses já utilizam estes softwares?

A Ordem dos Médicos (OM) e o Ministério da Saúde estabeleceram uma parceria para a sua disponibilização grátis a todos os profissionais de saúde. O software será disponibilizado nos sites da OM e do Ministério de Saúde provavelmente já a partir destes mês. O médico passa, assim, em tempo real, desde que tenha acesso à Internet, a poder consultar esta ferramenta, sendo que 80 por cento das perguntas clínicas – se soubermos utilizar bem estes softwares – terão respostas em menos de 90 segundos. O software tem ainda uma área para o cidadão, que deverá passar a consultar informação sobre saúde aqui, pois há garantia da sua qualidade e veracidade.

«Hoje, que compreendemos como nunca os mecanismos das doenças, seria de esperar que as pessoas estivessem muito bem informadas e que dificilmente acreditassem em coisas esquisitas e mágicas. Steve Jobs, um dos homens mais inteligentes deste século, a quem foi detectado um pequenino tumor no pâncreas, tentou tratar-se com medicinas alternativas, meditação e dietas. Quando se quis realmente tratar, era tarde demais e acabou por morrer com uma doença facilmente tratável», afirma António Vaz Carneiro

O Centro de Estudos de Medicina Baseados na Evidência (CEMBE) foi criado há 20 anos e agora surge o Instituto de Saúde Baseada na Evidência. Por que houve necessidade de criar esta nova entidade?

O CEMBE, que chegou ao limite do seu crescimento, centrava-se na medicina e agora alargámos o espectro e abrangemos toda a saúde. Além disso, havia a necessidade de criar uma entidade com mais “músculo” para competir internacionalmente, pois queremos liderar grandes projetos ao nível europeu. O instituto nasce, assim, de uma parceria entre a Faculdade de Medicina e a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, destinando-se pura e simplesmente a fazer investigação clínica aplicada e epidemiológica, ou seja, com doentes e para os doentes. Vamos produzir ciência e fornecer informação de alta qualidade para servir de apoio aos decisores, que podem ser os clínicos, mas também os políticos ou os gestores. Por exemplo, se um hospital precisa de decidir que antibióticos deve ter, nós, para responder a esta pergunta, vamos fazer um estudo onde analisaremos aspetos como que tipos de doentes este hospital tem, quais os microrganismos detectados e quais as resistências a antibióticos já reportadas.

O que é que o levou a interessar-se pela saúde baseada na evidência?

Foi na experiência clínica que aprendi a importância extraordinária da ciência na medicina. Os anos 80 foram uma altura de viragem na medicina porque se começou a produzir estudos em série verdadeiramente bons e começámos a ter resultados muito bons, a curar mais cancros e a tratar melhor as pessoas. Esta informação de boa qualidade começou a impor-se. A grande pergunta de um médico no século XXI que ele tem de responder deontologicamente, eticamente, cientificamente e profissionalmente é: “Por que é que eu faço isto?” Tenho de explicar ao doente, ao gestor responsável pela despesa, ao responsável político, até ao jornalista.

Grande entrevista: António Vaz Carneiro, diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseados na Evidência

«lHouve um artigo no The Lancet que fez uma conotação entre um conjunto de crianças com autismo e a vacinação, mas a metodologia estava errada e escapou aos revisores do jornal. Depois disso, dezenas de milhares de estudos sobre a vacinação e o autismo já vieram demonstrar que não há qualquer relação», explica António Vaz Carneiro

Lançou, recentemente, o livro Mitos e Crenças na Saúde. Ainda há muitos mitos e crenças na saúde?

Hoje, que compreendemos como nunca os mecanismos das doenças, seria de esperar que as pessoas estivessem muito bem informadas e que dificilmente acreditassem em coisas esquisitas e mágicas. Mas a verdade é que continuam a acreditar nestas coisas e esta crença nada tem a ver com o seu nível cultural e socioprofissional. Um exemplo dramático é o do Steve Jobs, um dos homens mais inteligentes deste século, a quem foi detectado um pequenino tumor no pâncreas, que sendo endócrino poderia ter sido removido cirurgicamente. No entanto, tentou tratar-se com medicinas alternativas, meditação e dietas. Quando se quis realmente tratar, era tarde demais e acabou por morrer com uma doença facilmente tratável. O problema, de uma forma geral, é que se deixou de entender a ciência como uma metodologia sólida para compreender a realidade, o que pode ter consequências muito graves: a pessoa pode não se tratar ou tratar-se desadequadamente.

Quais são os mitos e crenças na área da saúde que estão mais enraizados na sociedade?

Há muitos. Há uns que são engraçados, como aquele que “se tiver os pés numa superfície fria vou constipar-me” – sabemos que o que provoca a constipação é o adenovírus, que nada tem a ver com os pés. Mas depois há situações mais graves como o movimento antivacinal, que acredita haver ligação entre as vacinas e o autismo. Houve um artigo no The Lancet que fez uma conotação entre um conjunto de crianças com autismo e a vacinação, mas a metodologia estava errada e escapou aos revisores do jornal. Foi isto que impulsionou o movimento. Depois disso, dezenas de milhares de estudos sobre a vacinação e o autismo já vieram demonstrar que não há qualquer relação.

«Acreditávamos que a medicina preventiva ia ter um efeito extraordinário e, afinal, constatou-se ter um resultado mais modesto do que o esperado, pois muitas doenças nada têm a ver com prevenção», conta António Vaz Carneiro

Quais os principais mitos que gostava de ver dissipados?

Desde já o de que a vacina provoca autismo, mas também o de o leite fazer mal à saúde. No entanto, destaco, como algo que temos de combater, a utilização excessiva de recursos no Sistema Nacional de Saúde que não é justificada quer pela evidência científica que pela sua relação benefício- -risco. Exemplo disso são os check-ups anuais: está bem estudado que estes, em pessoas saudáveis, fazem mais mal do que bem, pois há mais complicações devido aos falsos positivos.

De todas as convicções que já foram abaladas por descobertas científicas, qual a que mais o surpreendeu?

A convicção na medicina preventiva. Acreditávamos que a medicina preventiva ia ter um efeito extraordinário e, afinal, constatou-se ter um resultado mais modesto do que o esperado, pois muitas doenças nada têm a ver com prevenção. O cancro, por exemplo, é uma doença genética. Mesmo assim, obviamente, que é melhor apostar na prevenção. Mas se há situações óbvias, como deixar de fumar porque conhecemos bem os malefícios do tabaco, já não é tão óbvio dizer às pessoas para deixar de comer carne porque, para se fazer este tipo de afirmação, os efeitos negativos na saúde têm de ultrapassar os benefícios. E no caso da carne isto ainda não acontece.

Grande entrevista: António Vaz Carneiro, diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseados na Evidência

«A ciência não é estática e as metodologias alteram-se. Aquilo de que estávamos convencidos nos anos 50 modificou-se nos anos 70 e o mesmo aconteceu de 2010 para 2020. E espero que, daqui a 50 anos, 90 por cento do que acontece hoje esteja diferente; se não estiver, a ciência não avançou», defende António Vaz Carneiro

Tendo consciência deste efeito modesto da medicina preventiva, como é que o médico poderá ou deverá aconselhar o doente na ótica da prevenção?

Nós, médicos, temos de estar muito bem informados para explicar às pessoas o que são as doenças, o que é a saúde e o que se pode fazer, mas, ao mesmo tempo, temos de as libertar para que tomem as suas decisões. Não sou de proibir coisas aos meus doentes, daí procurar informá-los bem, chegando a fornecer-lhes estudos, para que tomem decisões conscientes.

Hoje em dia, somos constantemente bombardeados com estudos que, muitas vezes, chegam aparentemente a conclusões contraditórias. Como é que isto acontece?

Na saúde e na doença há uma grande incerteza sobre a maneira como as células funcionam porque os doentes não são máquinas e cada um tem as suas particularidades. Dito isto, a medicina não é uma ciência exata, ou seja, posso ter dez doentes a tomar o medicamento X para a diabetes, em que oito respondem bem, um responde mal e o outro não responde. Quais são os doentes que vão responder bem, mal ou não respondem ao tratamento? Não sabemos, mas temos de arriscar e como a probabilidade de resposta é oito em dez, o mais certo é resultar. Mas esta incerteza não é comunicada às pessoas. E a única hipótese de a diminuirmos é através de estudos científicos de boa qualidade, sendo natural terem algumas diferenças entre si porque a ciência não é estática e as metodologias alteram-se. Aquilo de que estávamos convencidos nos anos 50 modificou-se nos anos 70 e o mesmo aconteceu de 2010 para 2020. E espero que, daqui a 50 anos, 90 por cento do que acontece hoje esteja diferente; se não estiver, a ciência não avançou. Sabemos, contudo, que os estudos bem-feitos se aproximam mais da realidade. Quando isto acontece, é raro serem contraditórios e quando há alguma contradição sabemos a explicação. Se forem realmente diferentes, aí teremos de esperar por mais estudos para compreender a razão.

O médico assistente vai desaparecer porque os serviços vão-se organizar para poder responder, em equipa, 24 horas por dia, sete dias por semana. No fundo, teremos um sistema com um modelo semelhante ao das unidades de cuidados intensivos atuais», afirma António Vaz Carneiro

O que poderemos esperar em relação ao futuro na saúde?

Estou convencido que, pela primeira vez na minha vida profissional, estamos à beira de uma revolução. A prática clínica vai-se alterar nos próximos cinco a dez anos, não tanto porque vai aparecer tecnologia nova (muita já existe), mas porque vamos ser capazes de tratar mais individualmente cada doente graças à medicina de precisão. Mas também porque os próprios cuidados se vão transformar: o médico assistente vai desaparecer porque os serviços vão-se organizar para poder responder, em equipa, 24 horas por dia, sete dias por semana. No fundo, teremos um sistema com um modelo semelhante ao das unidades de cuidados intensivos atuais.


António Vaz Carneiro: «Acredito que podemos ajudar os médicos com sistemas de inteligência artificial»

António Vaz Carneiro partilha com a Revista Prevenir os seus projetos para o futuro. «Há áreas novas às quais me quero dedicar, como a inteligência artificial e o seu impacto nos cuidados. Quero perceber se é ou não possível mimetizar a maneira como os médicos pensam, pois o raciocínio clínico, sobretudo no âmbito do diagnóstico, é muito complexo. Acredito que podemos ajudar os médicos com sistemas de inteligência artificial a interpretar os sinais e sintomas dos doentes. Na verdade, hoje em dia já há softwares neste sentido, por exemplo há um de diagnóstico de fratura no pulso em que a pessoa faz o raio-X e a máquina, ao lê-lo, diz ao ortopedista “veja aqui ou ali que é capaz de ser uma fratura”.»

Última revisão: Janeiro 2020

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