Vítor Cotovio: «A ansiedade pandémica provou a nossa incapacidade de lidar com a incerteza»

Vítor Cotovio, médico psiquiatra e psicoterapeuta

Vítor Cotovio, médico psiquiatra, reflete sobre os danos emocionais provocados pela ansiedade que representa a luta contra a COVID-19 e bem como essa relação direta acentuou a vulnerabilidade psicológica de muitos. No entanto, garante, entre metáforas e apelos à humildade, é possível autorregular o cérebro para lidar e vencer esse desafio de forma organizada, positiva e protetora.

  • PorCarlos Eugénio AugustoJornalista
  • FotografiaArtur

  • Entrevista aDr. Vítor CotovioMédico psiquiatra, psicoterapeuta e membro do Conselho Nacional de Saúde Mental

São cada vez mais as pesquisas que confirmam o impacto da COVID-19 na saúde mental e o consequente crescimento de casos de ansiedade. Essa realidade foi sublinhada por um estudo global, que envolveu mais de 200 países, divulgado na revista The Lancet e que confirmou um aumento de 26 por cento entre os inquiridos que reportavam sinais moderados a graves de ansiedade. Vítor Cotovio, médico psiquiatra, confirma essa tendência também entre os portugueses, «não apenas na população em geral, mas entre os técnicos de saúde». Para o especialista, «a atual conjuntura global, em especial numa época da banalização do ato de viajar, ao contrário do que acontecia, por exemplo, aquando da Gripe Espanhola, facilita a circulação e propagação de um vírus que nos apanhou desprevenidos e sublinhou a nossa fragilidade psicológica e exposição ao pânico», sendo que a forma de o superar é apostar numa «gestão emocional positiva do medo através de atitudes protetoras», como explica nesta entrevista à Revista Prevenir.

Grande entrevista a Vítor Cotovio, médico psiquiatra

Vítor Cotovio, médico psiquiatra e psicoterapeuta

 

Vivemos há cerca de dois anos numa conjuntura pandémica que tem deixado marcas físicas, mas também emocionais, em especial pelo aumento dos sintomas de ansiedade. Quais as causas para tal?

Costuma dizer-se que estamos todos no mesmo barco, mas o que acontece é que estamos, sim, perante a mesma tempestade, sendo que os barcos, sejam pessoas ou organizações, e os remos, entendidos como o grau de resiliência e resistência a este tipo de crise, diferem. Portanto, chegar a um porto seguro depende de como vamos enfrentar a intempérie. Sendo a pandemia uma ameaça, mobilizou respostas relacionadas com a angústia, ansiedade e medo, tríade que pode refletir-se em perturbações e patologias diferentes. Por exemplo, para quem é mais obsessivo, a pandemia pode ter aumentando, via ansiedade, o medo de ficar contaminado ou os rituais de limpeza para o evitar; no hipocondríaco elevou a dúvida se está ou não infetado; quem é paranoico ficou ainda mais desconfiado, questionando se o outro está a ser cuidadoso ou está infetado. Por isso, é essencial perceber que há várias formas de encarar essa matriz tripartida em função das personalidades, pois podem parecer questões idênticas, mas não são.

O que as difere?

Por exemplo, o medo, apesar de potenciar a ansiedade, é uma importante reação emocional e fisiológica a uma ameaça objetiva, real ou iminente (“Será que vou ficar contagiado?”). Por sua vez, a ansiedade é a apreensão, por antecipação, perante uma ameaça futura e subjetiva (“Será que vou sobreviver?”). Já a angústia tem que ver com a inquietação, o vazio e a perda de sentido (“Será que as vagas do vírus vão acabar?”). É essa conjuntura alarmante que põe em causa a “mão existencial estruturante” e os seus cinco “dedos” ou sentimentos correspondentes: sobrevivência, segurança, pertença, reconhecimento e realização.

«É graças ao medo que temos sobrevivido ao longo dos tempos. Mas só através da boa gestão da ansiedade se impede que o medo se torne caótico», refere Vítor Cotovio

Refere o medo como um catalisador da ansiedade, mas esse sentimento pode ter também um lado sensato?

Claro, já que ajuda a proteger do risco. Essa é uma questão essencial, pois o Homem vive numa dialética entre o desejo de liberdade e segurança, sendo fundamental que se reúna uma esperança realista e um medo lúcido, sereno e estruturante. Aliás, é graças ao medo que temos sobrevivido ao longo dos tempos, apelando à nossa segurança e evitando disparates. Mas só através da boa gestão da ansiedade se impede que o medo se torne caótico.

Quando essa gestão não é competente, o que pode acontecer?

Uma desorganização que eleva a ansiedade ou, nesta conjuntura pandémica, atitudes de risco. Isso é comum entre os adolescentes que, depois de uma fase de confinamento, podem entregar-se à liberdade sem avaliar consequências. O negacionismo é outro exemplo pois pode alimentar o extremismo “descalibrado”, potenciando riscos desnecessários que aumentam a possibilidade de infeção.

Em relação aos infetados, já existem estudos que demonstrem, ou não, uma relação direta entre ter contraído o novo coronavírus e perturbações de saúde mental?

Alguns estudos refletem sobre a COVID-19 e os seus impactos biológicos, em particular consequências neuropsiquiátricas, existindo investigações que as consideram um fator de risco para se ser infetado, pois acentuam a instabilidade psicológica, em especial nos quadros de patologia mental grave, pois isso pode implicar maior dificuldade em cumprir as normas de proteção. Depois, estar perante uma ameaça constante, e como a resiliência é diferente entre cada um, pode tornar algumas pessoas mais vulneráveis à ansiedade ou stresse pós-traumático, principalmente entre os que estiveram internados por COVID-19. Hoje, fala-se tanto em doença mental também por essa relação, pois, afinal, todos podem ser atingidos por descompensações a nível do sofrimento psicológico, mesmo não sendo uma doença estruturada, e é essencial estar atento a alguns sinais que podem indiciar disfuncionalidade.

«A ansiedade, no caso da pandemia, tem que ver com a apreensão de uma inesperada ameaça e os níveis de preocupação mantêm-se. Esse descontrolo e incerteza acentuam um registo de ansiedade permanente e pode atingir um nível crónico», avisa Vítor Cotovio

Pode dar exemplos desses sinais?

Em particular nos casos de COVID de longa duração, podem acentuar-se no tempo sintomas físicos e psicológicos, como cansaço, estar-se mais ansioso, desligado da realidade e/ou sem energia vital. Quando isso acontece e esses sinais eram estranhos à pessoa antes da infeção, deve consultar-se um especialista.

Há dados sobre a prevalência desses casos entre os portugueses?

Ainda não, mas um estudo da Universidade do Minho avaliou os níveis de instabilidade emocional entre confinamentos e, mesmo entre infetados, verificou que, na segunda fase, apesar de as pessoas estarem mais adaptadas, continuavam psicologicamente instáveis. Esses dados são preocupantes, principalmente porque Portugal é o segundo país da União Europeia com mais problemas de saúde mental, em especial associados à ansiedade e depressão, o que se sublinhou com esta pandemia. Felizmente, depois de ultrapassado um estado de crise, a maioria volta à “normalidade”, mas alguns não o conseguem e devem procurar ajuda.

Em 2030 a depressão vai representar a principal carga de doença em termos de investimento da saúde, estima a OMS

Tem sentido essa procura em consultório?

Tenho recebido mais novos casos, sem patologias prévias com sintomas depressivos e ansiosos, com traços obsessivo-compulsivos, ataques de pânico, ou stresse pós-traumático. Mas também senti o regresso de outros que reativaram sintomas que não tinham há 20 anos, devido à ameaça do vírus e à sensação de insegurança. Ainda assim, muitos conseguiram manter o equilíbrio emocional apesar de já vivermos este cenário há muito tempo e isso elevar a probabilidade de se interiorizar uma ansiedade crónica.

A que distância estamos desse risco?

Por si, a ansiedade, no caso da pandemia, tem que ver com a apreensão de uma inesperada ameaça e os níveis de preocupação mantêm-se. Esse descontrolo e incerteza acentuam um registo de ansiedade permanente e pode atingir um nível crónico, pois estamos à beira de uma fadiga pandémica, um estado de saturação e indiferença que pode provocar um desconfinamento comportamental. No entanto, quem tem um instinto de sobrevivência mais declarado, apesar de cansado, vai continuar a cumprir; já outros podem, involuntariamente, seguir um caminho mais irresponsável. Exige-se, portanto, encontrar um “caminho do meio”, do bom senso, para reequilibrar decisões e enfrentar a ansiedade, não esquecendo, claro, de requisitar ajuda especializada.

«Muitas pessoas passaram a possuir estratégias cognitivo-comportamentais, de relaxamento, como a meditação ou exercício físico, e isso fez toda a diferença», conta Vítor Cotovio

Existem novas abordagens terapêuticas para combater a ansiedade?

Mais do que qualquer novidade terapêutica, aplaude-se a capacidade dos serviços de saúde em ativar respostas de apoio, como foram as consultas por telefone ou videochamada durante os confinamentos. Portugal tem um problema de base no que toca à acessibilidade na assistência à saúde mental, mas esta crise tem exigido maior necessidade de ajuda às pessoas. Depois, além das estratégias farmacológicas, sublinhou-se o apelo à ativação de ferramentas emocionais protetoras e essa valorização deu frutos. Muitas pessoas passaram a possuir estratégias cognitivo-comportamentais, de relaxamento, como a meditação ou exercício físico, e isso fez toda a diferença.

Depois da pandemia controlada, e face ao aumento de casos de ansiedade e depressão, a que distância estaremos de uma epidemia de doenças mentais?

A Organização Mundial da Saúde tem chamando a atenção para essa questão. A verdade é que, um dia, regressaremos à normalidade, mas alguns vão ter sequelas. Por isso é essencial, e sem dramatismos, estar atento aos sinais e atacar o mais preventivamente possível, promovendo estratégias para a literacia em saúde mental, como planos de ação que garantam acesso e continuidade de cuidados nessa área.

Nessa altura, a nível de relações sociais, como vamos sentir segurança para nos reaproximar?

Essa é a grande dúvida. Mas o Homem é um ser de relação e de presença, o que significa comunicação verbal e não verbal, saber ler e interpretar os sinais emocionais, em especial quando não existirem máscaras. Só assim voltaremos a conviver com as emoções alheias. Quanto aos mais inseguros, o medo de voltar a socializar pode levar ao isolamento.

1 em cada 5 infetados com COVID-19, mesmo sem antecedentes de patologia mental, poderá apresentar traços de ansiedade e/ou depressão três meses após o contágio, concluiu um estudo da Universidade de Oxford

Isso pode elevar a probabilidade de cenários de solidão?

Sem dúvida e isso é preocupante. A solidão, encarada como a expectativa de ter relações com os outros e não conseguir, mas também não ter quem cuide de nós e nos acompanhe, é a doença do século XXI. Mesmo num período de grande evolução tecnológica e científica, nunca estivemos tão sós e vulneráveis. Sem essa noção contribuiremos para a tal epidemia de saúde mental. Mas a solidão tem também consequências fisiológicas, pois baixa as defesas imunológicas e aumenta, em especial nos idosos, o risco de demências.

Ou seja, apesar de vivermos uma era rica em conhecimento a vários níveis, a pandemia colocou-nos numa posição de extrema fragilidade…

O ser humano está a enfrentar um dos maiores desafios na modernidade da sua história, e a ansiedade pandémica provou a nossa incapacidade de lidar com a incerteza. Perante isso, é urgente fazer um reset à arrogância de querer dominar o mundo. A esse propósito, o escritor e biólogo moçambicano Mia Couto refere que vivemos tempos em que “o invencível foi derrubado pelo invisível”, ou seja, o ser humano convenceu-se de que era indestrutível, mas, mesmo no século da Inteligência Artificial está impreparado para lidar com o incontrolável. A forma de o ultrapassar é sermos humildes para reconhecer as nossas fragilidades, mas também inteligentes para acionar ferramentas cognitivas e emocionais. Esse é o desafio ético para vencer esta pandemia.


Vítor Cotovio ensina: como controlar ataques de pânico

«Muitas vezes, as crises de ansiedade dão lugar a ataques de pânico, uma situação que, apesar de passageira, provoca um estado de descontrolo absoluto, com a sensação de morte iminente», refere Vítor Cotovio, médico psiquiatra. «Os sintomas podem variar entre “formigueiro”, taquicardia e falta de ar, e trazem à ideia o medo de ter um enfarte do miocárdio ou AVC.»

  • O que fazer: «O primeiro passo para lidar com esse problema, seja o próprio ou alguém que ouve/partilha o que se está a passar, é saber identificar um ataque de pânico e ter noção de que pode provocar uma ansiedade antecipatória. Essa maior literacia em saúde mental dá outras ferramentas preventivas e, para ajudar a lidar (e reduzir) esses episódios, aconselha-se a sua gestão através de técnicas de relaxamento, exercício físico, medicação e psicoterapia», recomenda o especialista.

8 passos para gerir a ansiedade

Vítor Cotovio, médico psiquiatra, explica como autorregular o cérebro de forma emocionalmente protetora.

  1. Manter rituais quotidianos, até em confinamento, «seja a hora de levantar, deitar ou das refeições, confere um ritmo emocionalmente saudável».
  2. Conservar os contactos sociais, «mesmo através das redes sociais e à distância, passa a ideia de pertença e presença».
  3. Equilibrar tempo de trabalho e lazer «salvaguarda-nos da “obesidade informativa”, evitando ser intoxicado por fake news».
  4. Reconhecer as emoções como legítimas, «aceitando o medo ou a inquietação, facilita a aprendizagem em lidar com as mesmas».
  5. Ser moderado, «evitando extremismos e negativismos, ajuda a compreender melhor a conjuntura, bloqueando o pessimismo».
  6. Rejeitar o caos e procurar ser solidário «eleva a noção de comunidade e de que somos úteis aos outros».
  7. Preservar hábitos de vida saudáveis «como dormir bem, fazer exercício físico regularmente ou meditar, protege psicologicamente».
  8. Procurar metas simples e realizáveis «é uma boa forma de se adaptar à realidade e manter um propósito de vida, mesmo perante a incerteza»
Última revisão: Fevereiro 2022

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