Celso Pontes: «Quanto maior a capacidade intelectual, melhor se resiste à doença de Alzheimer»

Celso Pontes sobre a doença de Alzheimer

Caracterizada fundamentalmente pela perda da memória, a doença de Alzheimer é a mais comum das demências. A ciência ainda anda à procura de respostas sobre esta patologia, mas já sabe que exercitar o cérebro ao longo da vida e adotar um estilo de vida saudável podem ajudar a defender-nos dela, indica Celso Pontes, médico neurologista, nesta grande entrevista.

  • PorRita AlvesJornalista
  • FotografiaArtur

  • Entrevista aDr. Celso PontesMédico neurologista

A doença de Alzheimer implica, geralmente, «uma severa e progressiva perda de células nervosas cerebrais e uma consequente diminuição progressiva das capacidades cognitivas, sobretudo da memória», sendo, por isso, denominada neurodegenerativa, explica Celso Pontes, médico neurologista, coordenador da Comissão Científica Alzheimer Portugal. Pertence à família das demências e é característica das «faixas etárias mais elevadas – surge, geralmente, após os 65 anos – e torna-se tão mais frequente quanto maior é a idade», afirma o médico neurologista, ressalvando que não é, contudo, «causada pela idade; o que acontece é que nestes doentes vão ocorrendo as referidas alterações ao longo dos anos e, quanto mais idade se tem, mais notórios são os sintomas».

Grande entrevista a Celso Pontes, médico neurologista

Celso Pontes sobre a doença de Alzheimer

No que diz respeito à prevalência da doença de Alzheimer, qual é o ponto de situação em Portugal face à Europa?

Estudos a nível europeu indicam que, em 2012, existiam em Portugal cerca de 182 mil pessoas com demência, das quais cerca de 150 mil com doença de Alzheimer, valores em conformidade com a média europeia. Durante alguns anos, os números foram sempre aumentando – a esperança de vida tem vindo a aumentar e quantos mais idosos houver, à partida, maior será o número de casos –, mas agora parecem estar a estacionar, pois as pessoas têm tendencialmente uma reserva cognitiva maior, há mais licenciados. Mas é importante lidar com estes números, que acabam por ter um grande peso: em média, um doente precisa de três cuidadores e, em fases mais avançadas, quando ficam acamados, podem necessitar de internamento.

O número de casos parece «estar a estacionar, pois as pessoas têm tendencialmente uma reserva cognitiva maior, há mais licenciados», refere Celso Pontes

Que alterações provoca esta doença no nosso cérebro?

As alterações que ocorrem são muito complexas. A mais relevante – e que foi descrita já em 1906 por Alois Azheimer, o médico que descreveu a doença pela primeira vez – é a existência de depósitos de substância amiloide e, dentro das células, de tranças neurofibrilares (agregados de proteína tau). Com o avançar da doença, há uma diminuição das células nervosas e das suas ligações (sinapses), levando o cérebro a perder parte da sua substância. Estas mudanças começam a acontecer antes de se manifestarem os sintomas clínicos.

E que sintomas são esses?

Uma vez que a doença é progressiva, os sintomas vão-se agravando, passando pela fase ligeira, moderada e, por fim, grave. O primeiro sintoma é, fundamentalmente, o defeito da memória. Os doentes têm dificuldade em memorizar, sobretudo, os acontecimentos recentes, o que acaba por afetar o trabalho e a execução de tarefas domésticas. Podem surgir depois alterações da linguagem, desorientação no tempo (não saber que dia é), espacial (não reconhecer o local onde está) e, em fases mais avançadas, em relação às pessoas (não saber quem é quem). Além disso, são frequentemente pessoas com juízos alterados, que não conseguem avaliar a gravidade de uma situação, e com alterações de pensamento abstrato, humor, comportamento e personalidade.

Celso Pontes sobre a doença de Alzheimer

«As estruturas do cérebro mais afetadas são as que permitem a fixação da memória; é como se o seu gravador estivesse avariado e não gravasse nada», Celso Pontes, médico neurologista

A que se refere quando fala de alterações do pensamento abstrato?

Se eu disser a uma pessoa saudável que a maior parte dos acidentes de comboio acontece na última carruagem e, por isso, a solução seria retirar a última carruagem, essa pessoa diria que isso não resolve a questão pois a penúltima carruagem passaria a ser a última, e assim sucessivamente, até o comboio ficar sem carruagens. O doente de Alzheimer pode não conseguir fazer esse raciocínio abstrato.

E por que razão se esquecem mais facilmente de eventos recentes?

As estruturas do cérebro mais afetadas são as que permitem a fixação da memória; e como se o seu gravador estivesse avariado e não gravasse nada. Mas isto vai depender também da intensidade das memórias: por exemplo, pode pousar os óculos e não se lembrar onde os deixou, mas, por outro lado, podem dizer-lhe que o jantar vai ser um prato de que gosta muito e ele não se esquecer. As mais antigas, embora estejam perfeitamente instaladas, podem também deteriorar-se numa fase mais avançada.

Os sintomas, principalmente a nível da memória, podem confundir-se com o que se considera próprio da idade?

De um modo geral, não. Com a idade, a pessoa pode ser um pouco mais lenta, ter dificuldades em manusear coisas complexas, mas não tem nem as características nem a intensidade dos sintomas. No diagnóstico, a maior dificuldade e os seus sintomas poderem confundir-se com os de outras doenças – como hematoma subdural crónico, tumor frontal, hidrocefalia de pressão normal –, dificultando-o em fases iniciais. No entanto, são fáceis de descartar através de exames. A outra grande dificuldade são outros tipos de demência, que, embora tenham algumas diferenças, podem ser inicialmente parecidos. Pode ainda haver uma mistura destas patologias, como acontece, por exemplo, em doentes com patologia vascular cerebral que desenvolvem demência vascular e que, muitas vezes, coexiste com doença de Alzheimer e doença vascular.

Há fatores que podem influenciar o risco de desenvolver a doença?

Ter-se uma boa saúde e bons hábitos comportamentais é uma proteção perante a doença. É extremamente importante combater as doenças cardiovasculares (nomeadamente a hipertensão arterial), diabetes, obesidade, dislipidemia (colesterol e triglicerídeos elevados), pois vão acrescer o risco devido as alterações ao nível do cérebro. Para tal, deve-se adotar uma alimentação saudável, do tipo mediterrânica, com menos gorduras e hidratos de carbono de ação rápida, com bastantes legumes, fruta, peixes grelhados; ter um sono de boa qualidade; sentir-se bem consigo mesmo e não sofrer de depressão, que favorece o desenvolvimento de Alzheimer. E, finalmente, exercício físico moderado adequado à idade.

«É, assim, fundamental manter uma vida cognitiva ativa, continuar a ter problemas para resolver e objetivos de vida. Deste ponto de vista, é tão importante resolver sudokus ou palavras-cruzadas, como ir ao supermercado e interagir com outras pessoas», Celso Pontes, médico neurologista

E a nível de “treino” mental?

A reserva cognitiva – tudo aquilo que a pessoa aprendeu, os estudos que fez – é muito importante. Parece que quanto maior a capacidade intelectual, melhor se consegue resistir à doença de Alzheimer. É, assim, fundamental manter uma vida cognitiva ativa, continuar a ter problemas para resolver e objetivos de vida. Deste ponto de vista, é tão importante resolver sudokus ou palavras cruzadas, como ir ao supermercado e interagir com outras pessoas.

Quais são os principais grupos de risco?

Esta é uma doença transversal a todas as populações, mas, em Portugal, há um perfil que se destaca: as mulheres viúvas, as domésticas e com baixo nível de educação. Em geral, as mulheres têm um risco ligeiramente maior, até porque também têm uma longevidade maior; as viúvas normalmente vivem sós e não tem tanta interação social; e as domésticas porque costumam ter uma alfabetização básica e a sua reserva cognitiva pode ser menor.

Qual é o papel da genética no desenvolvimento da doença?

Do ponto de vista genético, existem dois grupos importantes: a doença de Alzheimer esporádica, o tipo mais frequente, representando mais de 95 por cento dos casos, e a doença de Alzheimer hereditária, que corresponde a menos de cinco por cento dos casos, em que existem fatores genéticos bem marcados. Pessoas que têm estas mutações genéticas têm maior probabilidade de a desenvolver e, regra geral, mais precocemente, a partir dos 40 anos.

Como é feito o diagnóstico?

Hoje em dia, podemos fazê-lo com mais facilidade, que depende da fase em que o doente está quando procura ajuda. De um modo geral, começamos pela colheita da história e por uma observação clínica, pois a doença de Alzheimer é uma das causas de demência, mas não a única. Depois, fazemos testes às capacidades cognitivas – para comprovar ou não os seus sintomas –, que completamos com análises, exames de imagem cerebral, como a ressonância magnética, e com testes cognitivos mais elaborados, habitualmente feitos pela Neuropsicologia. Neste ponto, já é possível fazer um diagnóstico com um grau de probabilidade superior a 90 por cento, dependendo das circunstâncias. Se o paciente tiver a idade, características clínicas, uma evolução muito própria da doença, com os sintomas bem marcados, muitas vezes fazemos um diagnóstico de provável, mas de alta probabilidade.

Celso Pontes sobre a doença de Alzheimer

«Em fases mais avançadas, adotam-se técnicas de estimulação com música e aromas, com a revivência de memórias antigas, para que os doentes se sintam melhor», Celso Pontes, médico neurologista

E quando é necessário um diagnóstico de maior certeza?

Em certos casos, pode ser necessário recorrer a estudos mais específicos a nível da análise de marcadores biológicos no líquido cefalorraquidiano para avaliar os níveis da proteína beta-amiloide e da proteína tau total e fosforilada, que nos dão uma probabilidade muito grande da doença. Existem também exames de imagem específicos, como a tomografia por emissão de positrões (TEP), que determina se existe muito peptídeo fixado à amiloide, indicando a presença da doença. Se, além disso, fizermos estudos genéticos, temos um grau de certeza quase total.

Em termos de tratamentos, que opções existem?

O tratamento destes doentes deve ser global. Há dois tipos de sintomas: os cognitivos (como a falta de memoria) – em que os medicamentos, nomeadamente os anticolinesterásicos (donepezil, galantamina e rivastigmina) e a memantina, embora não os curem, atrasam o seu desenvolvimento –, e os psicocomportamentais (depressão, ansiedade, alterações de comportamento, irritabilidade, dormir mal), em que a medicação atua muito bem. Depois, há o tratamento a nível do exercício físico guiado e da estimulação cognitiva por técnicos, que deve ser reproduzida ao longo do dia. Em fases mais avançadas, adotam-se técnicas de estimulação com música e aromas, com a revivência de memorias antigas, para que os doentes se sintam melhor.

Que avanços se esperam no futuro?

Poder-se-á vir a tentar fazer uma intervenção genética e outro tipo de intervenções de estimulação; fala-se muito na estimulação magnética cerebral. Hoje em dia, os estudos estão dirigidos ao tratamento da deposição da amiloide e da proteína tau, que se faz ao longo dos anos e que acaba por dar sintomas. Então, os novos medicamentos, como os anticorpos monoclonais, têm sido dirigidos para impedir ou remover essa deposição. Depois existem também os que incidem em certas enzimas que favorecem o aparecimento dessa amiloide anormal. Neste momento, estão a decorrer em Portugal vários ensaios com medicamentos, não existindo, contudo, nenhum em comercialização que tenha uma ação diferente das referidas.


Doentes de alzheimer: como podem os familiares ajudar?

Celso Pontes, médico neurologista, sugere três estratégias essenciais que os familiares devem colocar em prática para aumentar o seu bem-estar e o do doente.

  1. «Informar-se acerca da doença e da sua evolução é fundamental, pois ajuda-os compreender por que razão o doente pergunta várias vezes a mesma coisa. Caso contrário, poderão pensar que o doente se esquece de tudo porque não está a fazer um esforço ou está desatento.»
  2. «Criar estratégias que levem o doente a colaborar e resistir a enervar-se. Por exemplo, tive um paciente reformado que tinha trabalhado na Guarda Nacional Republicana que, quando não queria mudar de roupa e tomar banho, a sua esposa dizia-lhe calmamente que tinha de o fazer porque tinha de se apresentar ao chefe. Aquilo ia ao encontro das suas memórias mais antigas, fazia um “clique” e, assim, a esposa já tinha a sua colaboração.»
  3. «Partilhar as tarefas, recorrendo a estruturas capazes de fornecer informação e ajuda nos procedimentos, como a associação Alzheimer Portugal, e a ajudas do Estado (como o subsídio de terceira pessoa ou para o uso de fraldas).»

“Tenta lembrar-te…” Não diga isto, aconselha Celso Pontes

«Tal como não dizemos a alguém que teve um AVC e tem o braço paralisado que mexa o braço, também não vamos dizer a um doente de Alzheimer para se lembrar de algo. As pessoas têm de aprender que quando o doente não se recorda, ele não se recorda de facto. É um pouco agressivo e pode magoá-lo dizer-lhe “já me perguntaste isso dez vezes”», frisa o médico neurologista Celso Pontes.


Quando ajudar o doente a tomar decisões?

«Se não se lembrar como é que se vai daqui para ali e em que data está, se tiver dificuldade em lidar com assuntos complexos, como os bancários, há uma diminuição da sua autonomia e vai necessitar da ajuda de uma terceira pessoa. Não quer isto dizer que haja uma perda total da autonomia; a pessoa pode continuar a ter a capacidade de se autodeterminar, sabendo o que quer ou o que não quer. Com a progressão da doença poderá precisar de ajuda também para as coisas básicas», explica Celso Pontes, médico neurologista.

Última revisão: Fevereiro 2019

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