Vasco Salgado: «A esclerose múltipla é um desafio constante para médicos e doentes»

Grande entrevista a Vasco Salgado

Existem cada vez mais casos de esclerose múltipla, uma doença autoimune que afeta o sistema nervoso central, podendo implicar um elevado grau de incapacidade, nomeadamente em termos de locomoção. Vasco Salgado, médico neurologista, explica o que já se sabe sobre esta doença e o que falta descobrir.

  • Por
    Carlos Eugénio Augusto
    Jornalista
  • FotografiaArtur

  • Entrevista aDr. Vasco SalgadoMédico neurologista, diretor do Serviço de Neurologia do Hospital Fernando Fonseca

A mais recente revisão do Atlas da Esclerose Múltipla, uma investigação conjunta entre a Organização Mundial da Saúde e a Federação Internacional das Sociedades de Esclerose Múltipla, concluiu que o número de casos da doença tem crescido, estimando-se que existam entre 2,3 e 2,5 milhões de pessoas afetadas em todo o mundo. Estes números confirmam a esclerose múltipla (EM) como uma das doenças neurológicas mais prevalentes e uma das principais causas de incapacidade, especialmente em jovens adultos. A maioria dos tratamentos foca-se no controlo dos sintomas desta doença de grande imprevisibilidade evolutiva, cujos alguns doentes podem ter um elevado grau degenerativo enquanto outros participam no Ironman. Essa incógnita é mesmo, tal como o confirma à Revista Prevenir, Vasco Salgado, médico neurologista e investigador principal e coordenador nacional em ensaios multicêntricos nas áreas de doenças cerebrovasculares, demências e esclerose múltipla, «um dos principais desafios para quem a investiga ou sofre os seus efeitos na pele».

Grande entrevista a Vasco Salgado, médico neurologista

77% dos doentes com esclerose múltipla deixa de trabalhar, indicam dados da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla. Entre os doentes que continuam profissionalmente ativos, 58 por cento estão em regime part-time

A prevalência da esclerose múltipla tem aumentado em todo o mundo. Em Portugal , na última década, passámos de cinco para oito mil casos. A que se deve esse crescimento?

Trata-se de um fenómeno muito debatido na classe médica mas sem conclusões concretas. Inicialmente, pensou-se que poderia estar relacionado com a evolução dos meios de diagnóstico, mas existem outros fatores que acontecem, não só numa doença de evolução aleatória e imprevisível como a esclerose múltipla mas também noutras doenças autoimunes, que levaram a esse crescimento de doentes. Trata-se de uma patologia, de momento sem cura, autoimune, o que significa que, através de mecanismos ainda desconhecidos, algumas células afetam o sistema nervoso central. Essa é a justificação para o aparecimento de surtos. Para complicar, regista-se ainda uma componente neurodegenerativa que acaba por determinar a incapacidade associada à doença.

«É a imprevisibilidade e possibilidade de afetar várias áreas que dá a tal multiplicidade à doença», explica Vasco Salgado, médico neurologista

Em termos biológicos, o que acontece ao sistema nervoso central em caso de esclerose múltipla?
Na sua apresentação mais frequente, a chamada surto-recidiva, o doente vai tendo surtos, fenómenos que atacam o sistema nervoso central, provocando uma reação inflamatória crónica, sobretudo na bainha de mielina, uma faixa de gordura que protege as fibras nervosas e auxilia na transmissão de informação ao longo do organismo. É o somatório destas lesões que implica a incapacitação progressiva do doente, e o surto em si traduz-se em sintomas que afetam uma área particular do sistema nervoso central. Durante esse processo, formam-se lesões que se apelidam de placas. Como consequência, se for a parte motora a ser atingida, o doente terá queixas de falta de força; se a área afetada for da região sensitiva, haverá problemas a nível da sensibilidade. É essa imprevisibilidade e possibilidade de afetar várias áreas que dá a tal multiplicidade à doença.

Fatores como a intensidade ou duração do surto estão diretamente relacionados com os danos provocados?
O mais importante é o local que foi afetado. Existem situações relativamente benignas, nomeadamente nas alterações sensitivas, e outras mais preocupantes, como quando o doente tem uma nevrite ótica e fica com defeito visual. Ainda assim, as situações mais complicadas acontecem a nível da medula e podem condicionar irremediavelmente a capacidade motora.

Mesmo tendo em conta essa heterogeneidade, é possível traçar o perfil do doente com esclerose múltipla?
Sim. Falamos de alguém jovem, principalmente do sexo feminino, que tem os primeiros sintomas entre os 20 e os 30 anos. A hereditariedade é também um fator de risco, principalmente no caso de ambos os pais terem a doença. Os sinais de alerta variam entre perturbações visuais, alterações da sensibilidade, complicações motoras que determinam perda de força muscular dos membros. Quando esses sintomas surgem de forma aguda devem alertar doentes e médicos para a possibilidade do diagnóstico.

Mediante os sinais de alerta, o que se deve fazer?

Ir ao médico o mais rapidamente possível, principalmente no caso de uma manifestação aguda em que, por exemplo, no espaço de 24 horas, se deixa de ver de um olho ou existe uma perda significativa da sensibilidade ou capacidade motora. Quanto ao especialista a consultar, é normal que o doente escolha pelas características das queixas. Se, por exemplo, se trata de um problema na visão, consulta um oftalmologista; caso se trate de uma alteração da força ou sensibilidade o mais normal é que se procure um clínico geral. Depois dessa primeira abordagem são muitos os doentes que são encaminhados para um neurologista.

São pessoas com esse quadro clínico que recebe maioritariamente em consultório?

Sem dúvida. E o primeiro passo é fazer o historial clínico para conseguirmos identificar episódios que já permitiram um índice de suspeição elevado da doença. Além disso, o doente é sujeito a uma série de exames que ajudam no diagnóstico e permitem a sua confirmação.

Que tipo de exames, concretamente?

Sem exceção, é recomendada uma ressonância magnética ao cérebro pois permite, em associação com o tal historial clínico, ter uma certeza quase absoluta do diagnóstico. Pode ainda recorrer-se a outros meios de diagnóstico como a punção lombar e os estudos neurofisiológicos, sobretudo a nível da visão, denominados por potenciais evocados. Com recurso a estes exames, constrói-se um algoritmo que permite chegar a um diagnóstico de esclerose múltipla.

Quais são os principais desafios após o diagnóstico?

A esclerose múltipla é um desafio constante e conjunto, para médicos e doentes. Para os médicos, tentar controlar os surtos e a incapacidade provocada pela doença; para o doente, combater aquela imagem, que existe e é verdadeira em alguns casos, que remete para uma cadeira de rodas. Recentemente surgiu uma maior preocupação com a possibilidade de disfunções cognitivas. Felizmente, a ciência vai apresentando soluções no controlo da sintomatologia.

Quais são as mais eficazes?

Existem medicamentos para três níveis e intervenção. Na grande maioria, os doentes usam fármacos de primeira linha, tanto injetáveis como orais. Já os de segunda linha são recomendados por falência terapêutica dos anteriores ou impossibilidade da sua toma. Mais recentemente chegaram ao mercado dois fármacos que são aconselhados para as formas mais agressivas da doença. Todos eles têm como objetivo controlar a fase inflamatória.

«A prática de exercício físico e uma alimentação rica em fibras, leguminosas, fruta e peixe podem ajudar a combater um diagnóstico confirmado», afirma Vasco Salgado

Essas novidades significam que estamos mais perto da cura da doença?

Falar na cura é muito prematuro, tendo em conta que ainda não se conseguem contrariar totalmente os efeitos degenerativos da doença mas a ciência tem conseguido alguns avanços, principalmente após a década de 2000. Exemplo disso foi a recente aprovação de um anticorpo monoclonal que tem algum efeito no controlo da progressão da esclerose múltipla primária progressiva. Além disso, no tratamento dos sintomas, existe, há alguns anos, um medicamento que melhora a locomoção dos doentes com dificuldade na marcha e outros que ajudam a controlar a incontinência. É um processo gradual e a sua evolução, e sucesso passam por um envolvimento mais global na própria doença.

A que tipo de envolvimento se refere?

Existir em Portugal um Registo Nacional de Doentes, em intercâmbio direto com outros países que já o possuem, o que acabaria por ser formativo para todos os profissionais envolvidos no acompanhamento da doença, permitindo saber com mais detalhe as características da população que segue. Permitiria melhorias a nível médico, social e até económico.

Existe forma de prevenir esta doença?

Não lhe chamaria prevenção, mas recomendam-se alguns cuidados, nomeadamente ao nível do estilo de vida. Sabemos, por exemplo, que o tabagismo, o défice de vitamina D e a exposição ao vírus Epstein-Barr, da família do herpes na infância, podem ser gatilhos para o aparecimento de esclerose múltipla. Por outro lado, a prática de exercício físico e uma alimentação rica em fibras, leguminosas, fruta e peixe podem ajudar a combater um diagnóstico confirmado. Costumo dizer aos meus doentes que numa patologia em que uma das principais preocupações é a incapacidade motora, deve existir uma preocupação com aquilo que comemos e em evitar o excesso de peso pois a obesidade e o aumento da massa muscular são os maiores inimigos para alguém com problemas de mobilidade.

O contexto degenerativo pode dificultar a qualidade de vida, em termos emocionais?

Essa é outra das nossas preocupações. Por isso, a maior parte das consultas são conduzidas por equipas multidisciplinares e têm uma frequência que permite ir acompanhando, não só a doença, mas também o estado emocional do doente. Esse seguimento permite estar alerta a essa situação e intervir atempadamente, até porque a depressão é um sintoma muito habitual na doença, principalmente quando se sentem mais dificuldades ou incapacidade de realizar algumas tarefas quotidianas, trabalhar ou ser socialmente ativo.

Isso é essencial para enfrentar a doença…

É fundamental. Continuar social e profissionalmente ativo é da maior importância para a autoestima do doente pois, apesar de estar condicionando pelos sintomas, sente que está a contribuir para a família e sociedade. O pior que pode acontecer a um doente crónico é entrar em absoluta depressão e não conseguir reagir à adversidade. Muitas vezes, essa frustração faz com que abandone a terapêutica e o seguimento médico. Isso só consegue ser contrariado se o doente se sente emocional e socialmente apoiado e equilibrado. E essas são as melhores armas para enfrentar a doença.


Tipos de esclerose múltipla

Existem várias formas de apresentação da doença, estando maioritariamente relacionadas «com a existência, ou não, de surtos e o grau de incapacidade que provocam», explica Vasco Salgado, médico neurologista.

  • Surto-recidiva
    «É a tipologia mais frequente. É pontuada por vários surtos que se manifestam de diversas formas, como por exemplo alterações visuais, sensitivas e motoras, e, na maior parte das vezes, a recuperação é total ou muito elevada. Mas a multiplicidade destes episódios prejudica o cérebro e quanto maior a frequência, maior será a probabilidade de progredir para outro nível.»
  • Secundária progressiva
    «Assume contornos mais degenerativos, não estando relacionada com a ocorrência de surtos mas com o aumento da incapacidade registada ao longo do tempo. A recuperação é, por norma, incompleta.»
  • Primária progressiva
    «Surge tendencialmente mais tarde, entre os 40 e os 45 anos. Não existem surtos mas um aumento da progressão da incapacidade que se verifica logo a partir dos primeiros sintomas.»
  • Benigna
    «É algo discutível a nível médico e científico pois é difícil identificar que doentes podem ter esse carácter benigno desde o diagnóstico inicial. Não sendo muito frequente, existem doentes que têm o diagnóstico estabelecido e fazem medicação durante anos, mas a partir de determinada altura coloca-se a possibilidade de a interromper pois não existem quaisquer sintomas e a doença está estabilizada.»

Fonte: Adaptado a partir de dados fornecidos por Vasco Salgado, médico neurologista


Ser mulher é um fator de risco, refere Vasco Salgado

«Pensa-se que por questões hormonais, mas ainda não temos dados científicos que o comprovem. O que se sabe é que ser mulher tem um impacto real naquilo que são as manifestações da doença e as complicações que daí resultem. Mas, paradoxalmente, a gravidez é um estado que protege da doença. O reverso da medalha é que no pós-parto existe um maior risco de reativação, daí que pareça óbvio que as alterações de natureza hormonal sejam responsáveis», explica Vasco Salgado, médico neurologista.

Última revisão: Dezembro 2018

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