Rita Charon: «É urgente tornar a medicina um ato mais humano»

Rita Charon, Medicina Narrativa

A melhoria dos cuidados de saúde ganha força na relação mais próxima entre médico e paciente. Essa é a abordagem defendida pela Medicina Narrativa, uma disciplina que junta os princípios da arte à ciência, inspirando-se nas histórias pessoais dos doentes para fins terapêuticos, como nos explicou a médica Rita Charon.

  • PorCarlos Eugénio Augusto
    Jornalista
  • FotografiaArtur

  • Entrevista aProfessora Doutora Rita Charon
    Médica de Clínica Geral em Harvard e uma das criadoras do Programa em Medicina Narrativa, na Universidade de Columbia, Nova Iorque

A Medicina Narrativa deu os primeiros passos na década de 90, nos Estados Unidos da América (EUA), assumindo-se com um método centrado no doente e não na doença. Rita Charon, médica de Clínica Geral é uma das pioneiras da introdução desta disciplina no círculo universitário norte-americano. Em entrevista à Revista Prevenir, sublinhou a necessidade de «reconsiderar a relação médico-doente, para (re)valorizar a singularidade e o contexto específico de cada caso, e combater um sistema de saúde que coloca preocupações corporativas e burocráticas acima das necessidades dos pacientes. Só assim se garante a singularidade de cada experiência clínica e a proximidade humana entre profissional de saúde e paciente, pressuposto fundamental para melhorar os cuidados de saúde».

Grande entrevista a Rita Charon, médica pioneira em Medicina Narrativa

Rita Charon, Medicina Narrativa

«Infelizmente, os médicos são apenas treinados para identificar o problema, sem se importar com a linguagem complexa do doente, muitas vezes expressa por gestos ou silêncios, sinónimo de uma dor intraduzível em palavras», refere Rita Charon

Como surgiu o conceito de Medicina Narrativa?

Quando me tornei médica internista, tinha uma ideia romântica da profissão, mas, à medida que ia exercendo, percebi que não estava preparada para a realidade diária. Durante o curso, não nos ensinam a interpretar as muito complicadas histórias dos pacientes ou como reagir quando apenas dizem que não se sentem bem. Infelizmente, os médicos são apenas treinados para identificar o problema, sem se importar com a linguagem complexa do doente, muitas vezes expressa por gestos ou silêncios, sinónimo de uma dor intraduzível em palavras. Essa experiência fez nascer a necessidade de encontrar uma forma de interpretar essas histórias, e a melhor forma de o fazer é encará-las como narrativas. Só assim nos tornamos melhores ouvintes e sabemos qual o próximo passo. Para isso, fui aprender Literatura, pois queria ter mais ferramentas para interpretar os meus pacientes. Esse foi o primeiro passo para chegar à Medicina Narrativa, uma abordagem que trata o doente com técnicas que permitem decifrar o que revelam. É como ler um intrincado romance de Dostoievski, mas em equipa, como parceiros de luta e de forma empática, assumindo o compromisso de ouvir o paciente.

«Tenho pacientes que choraram a meio do relato e, quando lhes pergunto porque o fazem, a resposta recorrente é que nunca ninguém os tinha posto à vontade para dizer o que sentiam», conta Rita Charon

Como pode o médico trabalhar esse compromisso?

Todos os dias assistimos a histórias dramáticas nos noticiários, no cinema, ao folhear um livro ou a contemplar um quadro. Essas são as formas mais quotidianas de entender o sofrimento alheio. Aquilo que a Medicina Narrativa pretende é ensinar a interpretar esses acontecimentos, essa dor, os silêncios e palavras que ajudam a decifrar o paciente. Como? Aliando arte e ciência. Pois ao juntar emoção e pragmatismo, chegamos ao compromisso e passa a existir um envolvimento entre médico e paciente, em que o primeiro lê os sentimentos do outro. Cria-se um “atalho” entre profissional de saúde e o lado mais emocional do processo médico através do que se conversa e, acima de tudo, ouve.

Como é feito esse registo do que o doente revela?

Quando recebo um doente, anoto tudo o que diz, numa linguagem normal, como se escrevesse uma “história”. No final da consulta, mostro o que escrevi e pergunto se entendi o que relatava. Outras vezes, são os próprios doentes que escrevem sobre o que sentem. É um “jogo” onde o prémio é a confiança entre pares. Este método pode ser aplicado em qualquer situação em consultório, pois deve fazer parte do processo clínico e ser determinante para o seu desfecho.

«Alguns médicos têm receio de dar voz aos pacientes, pois temem que vão falar durante horas e sem motivos de interesse, mas a minha experiência diz que, no máximo, falam oito, dez minutos», afirma Rita Charon

Quais os pontos mais divergentes entre a Medicina Narrativa e a abordagem médica mais convencional?

Essencialmente, apostar numa análise não mecânica da doença, o que leva os médicos a fazer uma bateria de perguntas fechadas, mas não assumem o compromisso de se envolver emocionalmente. Mas, ao dar voz ao doente, podemos esperar o inesperado. Tenho pacientes que choraram a meio do relato e, quando lhes pergunto porque o fazem, a resposta recorrente é que nunca ninguém os tinha posto à vontade para dizer o que sentiam. É certo que alguns médicos têm receio de dar voz aos pacientes, pois temem que vão falar durante horas e sem motivos de interesse, mas a minha experiência diz que, no máximo, falam oito, dez minutos, e esse tempo revela-se fundamental e pode ser decisivo para a cura. É assim que se conseguem mais informações sobre o paciente, além das queixas óbvias, o que ajuda a contextualizar todo o quadro clínico.

Sabendo que, em média, uma consulta em Portugal dura cerca de 15 minutos, isso não condiciona o médico a seguir um método como a Medicina Narrativa?

Essa é uma das grandes questões. Desde que fundámos o Programa de Medicina Narrativa para estudantes de Medicina na Universidade de Columbia, em 2000, as pesquisas que realizámos nos EUA têm provado a importância dos métodos desta abordagem no atendimento clínico, nomeadamente em relação à confiança dos pacientes no que toca aos conselhos médicos, seja na realização de exames, no cumprimento da terapêutica ou na maior probabilidade de voltar à consulta. O próximo passo será provar que a Medicina Narrativa pode ajudar os Estados a economizar na Saúde, pois, se o paciente tiver mais tempo em consultório, pode ter maior acesso a informação sobre a prevenção de problemas como, por exemplo, o tabagismo ou a obesidade, questões que significam muitos milhões de gastos em terapêuticas. Mas, para isso, precisamos mais do que 15 minutos…

Qual a mais-valia desse programa para os estudantes de Medicina?

Alargar a linguagem da própria medicina enquanto ato. O curso é também muito frequentado por enfermeiros, doentes e familiares, e até padres. O que nos deixa mais orgulhosos é que dizem que o curso os tornou mais conscientes e felizes. Dá-lhes uma visão mais atenta e criativa que permite entender o sofrimento. E confessam sentir-se mais curiosos pelo paciente e doença, o que deve ser usado para investir na procura do tratamento adequado, na interpretação do que ainda não se sabe.

Rita Charon, Medicina Narrativa

«Os hospitais concentram-se mais em aumentar o número de consultas do que na qualidade das mesmas. A saúde está a tornar-se um negócio perigoso e os médicos estão a perder o controlo sobre a sua prática, sentem-se manipulados, traídos e perdem o sentido de missão», afirma Rita Charon

A Medicina Narrativa pode servir como uma “autoterapia” para os profissionais de saúde?

Infelizmente, muitos estão desiludidos, exaustos, deprimidos. É assustador o número de médicos que estão a desistir da profissão, em parte porque a saúde tornou-se demasiada burocrática e corporativa. Os hospitais concentram-se mais em aumentar o número de consultas do que na qualidade das mesmas. A saúde está a tornar-se um negócio perigoso e os médicos estão a perder o controlo sobre a sua prática, sentem-se manipulados, traídos e perdem o sentido de missão. Em alguns estados norte-americanos, estão proibidos de aconselhar métodos contracetivos ou falar de aborto. Nos EUA, existe um perigoso controlo político que põe em causa o sistema de saúde. Para tentar contrariar esse cenário, desenvolvemos um projeto de investigação em clínicas de Medicina Familiar, através de workshops com leituras de livros e visionamento de filmes, com toda a equipa. Durante 45 minutos por semana, ninguém fala de medicina e não se sente o fantasma da hierarquia. Essa partilha gerou uma comunhão. O projeto durou um ano e o sucesso foi tal que em algumas clínicas perguntaram se podiam continuar os workshops, mesmo depois do expediente.

«A experiência tem-nos demonstrado que os métodos da Medicina Narrativa, quando integrada no processo clínico, torna-o mais célere, pois permite conhecer melhor o doente, orgânica e emocionalmente, e avaliar uma saída terapêutica», conta Rita Charon

Partindo a Medicina Narrativa daquilo que o doente revela, como se transforma esse conhecimento num tratamento?

Em tempos, fui acusada de estar a roubar as ideias da psicanálise. Mas aquilo que pretendemos é que o doente transforme o que sente em palavras. E os benefícios para o doente começam logo a sentir-se a partir dessa partilha. Essa será a base da abordagem, com os avanços e recuos típicos das terapias. E o tratamento é um conjunto de “capítulos” que, esperemos, resultem num final feliz. Essa é a forma de a Medicina Narrativa centrar o doente no problema e avaliar a sua reação às hipóteses de tratamento. Essa filosofia também se pode, e deve, aplicar na prevenção de doenças como diabetes, AVC ou enfarte do miocárdio, numa mudança de mentalidades e comportamentos. Estes métodos são a chave para uma melhor saúde e bem-estar, e as pessoas têm de passar a sentir o desejo de estar bem. Isso implica um esforço coletivo, um “ativismo” em prol de uma vida melhor. E a Medicina Narrativa, enquanto análise e interpretação criativa de um problema, leva a esse caminho. Além de ser uma abordagem mais positiva da situação, ajuda o paciente a manter o foco nos próprios cuidados de saúde. Mas, além disso, ajuda-o a entender melhor o contexto e a ter a noção daquilo que pode fazer para ajudar o médico, assumindo uma atitude proativa e, acima de tudo, sem esconder qualquer informação. A experiência tem-nos demonstrado que os métodos da Medicina Narrativa, quando integrada no processo clínico, torna-o mais célere, pois permite conhecer melhor o doente, orgânica e emocionalmente, e avaliar uma saída terapêutica.

O que alterou na sua prática clínica graças aos métodos da Medicina Narrativa?

Tudo. Deixei de ser uma médica académica que só fazia perguntas e aprendi a tornar o consultório num local de partilha. Hoje, apenas digo: “Sou a sua médica. Diga-me o que devo saber sobre a sua saúde”. Depois, os estudos que fiz na área da literatura ajudam a interpretar cada palavra do paciente. Até porque, muitas vezes, o doente fala por metáforas, numa espécie de “poesia” mascarada pela doença. Vou dar um exemplo. Recebi um rapaz que se queixava de terríveis dores de cabeça. Mas havia outra coisa que o preocupava: sempre que bebia água, tinha imediatamente de urinar, como se, nas suas palavras, o seu corpo fosse uma “barragem” a libertar o excesso. Passei essa informação ao neurologista que acompanhava o processo e que descobriu que o rapaz tinha uma perturbação congénita rara, que provocava as dores de cabeça, que, entretanto, ficou controlada. São essas experiências que tornam a medicina um desafio tão exigente e gratificante, mas também pode ser dramático, pois nunca sabemos se conseguimos salvar um doente.

Face a esse quotidiano imprevisível, essa abordagem ajuda o médico a manter o equilíbrio emocional?

Sim, pois ajuda a preencher o vazio que um cenário de doença representa também para um profissional de saúde. E ainda que saibamos que, obvia e naturalmente, um dia vamos morrer, para muitos médicos, a morte é o maior inimigo, e encaram a perda de um paciente como uma derrota. A Medicina Narrativa pode contribuir para que não sinta essa culpa e ser um alerta humanista e honesto. Por exemplo, o pior que podemos fazer a um doente terminal é abandoná-lo, “lavando as mãos” ao dizer que se fez tudo o que era possível ou até recomendar outro tratamento (apesar de saber que não terá efeito) para que não se sinta abandonado. O certo é manter o contacto com o doente, acompanhá-lo até ao fim, marcar presença e ser solidário, mesmo na ausência de tratamento. É isso que faz a diferença. Temos, em conjunto, de entender, definitivamente, que é urgente tornar a medicina um ato mais humano.


Os 5 princípios da medicina narrativa

Rita Charon, médica de Clínica Geral e uma das pioneiras da Medicina Narrativa, identifica os pontos-chave dessa abordagem para se conseguir fortalecer os laços entre médico e paciente.

  1. Dar a voz ao paciente
    «Ao permitir que o paciente conte a sua história e exprima os seus sentimentos sem interrupções, o médico cimenta a conexão entre profissional de saúde e o lado mais emocional do processo clínico.»
  2. Ser curioso
    «Se o médico demonstrar um genuíno interesse pela história do paciente, assim como pelo contexto sociocultural e familiar desse, a predisposição do doente para o que se seguirá aumenta.»
  3. Ajudar sem julgar
    «A responsabilidade do médico é cuidar do paciente sem o julgar.»
  4. Aceitar a dúvida
    «Ao tolerar o que não sabe, a incerteza, o paradoxo, o médico investirá mais na procura do tratamento adequado, evitando precipitar-se numa resposta prematura.»
  5. Assumir o desafio em conjunto
    «Cabe ao médico fazer o paciente sentir-se acompanhado, passando a ideia de que o processo clínico é uma luta conjunta.»

A medicina narrativa em Portugal

Responsável desde 2009 pelo Projeto em Humanidades Médicas, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), Isabel Fernandes, professora catedrática da mesma instituição e doutorada em narrativas literárias, teve o primeiro contacto com a medicina narrativa «num congresso internacional no Canadá, em 2008. O interesse sobre o tema foi tal que, em 2010, com o apoio de colegas e instituições, realizámos o primeiro encontro científico em Portugal. O êxito desse evento deu origem a workshops e palestras, e, em 2012, nasceu um Seminário Permanente na FLUL. Mais tarde, criámos a Escola de Verão em Medicina Narrativa, com uma periodicidade bienal. A primeira edição funcionou em 2018. «Em termos curriculares, é possível frequentar uma disciplina opcional de pós-graduação em Medicina Narrativa, também oferecida como curso livre, na FLUL; também lecionamos um curso opcional em Humanidades Médicas na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Paralelamente, estamos a trabalhar no projeto SHARE – Saúde e Humanidades Atuando em Rede, uma iniciativa patrocinada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, que aposta na investigação e formação em hospitais, associações de doentes e escolas de ensino superior».

Última revisão: Agosto 2019

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