Ana Cláudia Arantes: «Quem não pensa na sua morte não vive»

Ana Cláudia Arantes: «Quem não pensa na sua morte não vive»

Como ter uma vida que valha a pena ser vivida? Ana Cláudia Arantes, médica especialista em Cuidados Paliativos, Geriatria e Gerontologia, indica caminhos. Pensar na morte é um deles.

  • PorBárbara BettencourtJornalista
  • FotografiaArtur

  • Entrevista aDra. Ana Cláudia ArantesMédica especializada em Cuidados Paliativos, Geriatria e Gerontologia

Ana Cláudia Arantes, médica especialista em Cuidados Paliativos, Geriatria e Gerontologia, acompanha, há mais de duas décadas, no Brasil, pessoas em estado terminal. Quando o seu livro foi lançado no seu país, disseram-lhe que não iria vender por causa do título, mas A Morte É Um Dia Que Vale a Pena Viver já vai na 7.ª edição. Em Portugal foi editado pela  Oficina do Livro.

A morte é algo em que não se quer pensar e se empurra para debaixo do tapete. O seu livro convoca-nos a encará-la de forma diferente…

Você pode pô-la debaixo do tapete, mas um dia ela vai sair de lá e isso é válido para todo o mundo. A abordagem do meu livro é o espaço que eu encontro para chegar às pessoas com coragem de viver uma vida boa. Porque quem não pensa na sua morte não vive. Quem não pensa que a vida termina não aproveita o seu tempo, não dá valor às suas relações, à sua alegria… No que toca à morte, somos como crianças brincando ao esconde-esconde numa sala vazia. Você fecha os olhos e acha que ninguém está te vendo. Mas você está sendo visto, inclusive pela sua própria morte, não vai ter como você se esconder dela.

«A morte não é um fracasso, ela faz parte da vida. Fracasso é a sua própria vida, caso você não tenha vivido»

Antigamente as pessoas morriam em casa e a morte era encarada de forma mais natural…

A ciência contribuiu muito para aniquilar o espaço da morte na vida das pessoas. Ganhámos décadas de expectativa de vida, mas ainda assim as pessoas morrem. O facto de termos tratamento para muitas doenças e de o hospital ter sequestrado a morte para dentro dele faz com que quase seja proibido morrer. Só se morre depois de se ter sofrido muito no hospital. Aí foi feito “tudo” e a pessoa perdeu a luta porque morreu. É muito degradante ver alguém que morre como um perdedor. A morte não é um fracasso, ela faz parte da vida. Fracasso é a sua própria vida, caso você não tenha vivido.

O que podemos aprender ao contemplar a nossa morte?

O medo da morte é universal, mas, ao mesmo tempo, cada um tem o seu próprio medo e ele é muito particular. Você pode ter medo da desintegração do seu ser, de não existir mais, de ser esquecido, de chegar no final da vida e ver que não fez diferença nenhuma no mundo, pode ter medo do depois, de não encontrar as pessoas que ama, de não poder fazer coisas que gostaria de ter feito… O confronto com a sua morte tem muita sabedoria, mostra o que é importante na sua vida, o que tem valor, o que é prioridade. Ao temer a morte, você não se aproxima para saber o que ela tem para te ensinar. Por isso digo que as pessoas precisam de ter alguma chance de trocar a experiência de medo da morte por respeito.

«Não pensar sobre a morte é, muitas vezes, sinónimo de uma vida adiada. Aquela em que o fim de semana é melhor do que a segunda-feira, as férias melhores do que o resto do ano»

Não pensar sobre a morte é sinónimo de uma vida mais pobre?

Não pensar sobre a morte é, muitas vezes, sinónimo de uma vida adiada. Aquela em que o fim de semana é melhor do que a segunda-feira, as férias melhores do que o resto do ano, a aposentadoria mais valiosa do que cada um dos dias de trabalho. As pessoas que vivem assim não estão dispostas a ter uma vida que valha a pena “agora”.

Trata-se de lembrar que o tempo está contado?

Quantas vezes não fazemos escolhas para agradar aos outros, queremos ser artistas ou médicos ou ir viajar, mas todo o mundo diz ‘agora não’ e nós dizemos ‘agora não’. Sempre que o fazemos, estamos a adiar a nossa vida e pode ser que não tenha depois. E as pessoas que te aconselharam não vão morrer no seu lugar.

Na sua prática clínica, depara-se muito com o arrependimento do não vivido na iminência da morte?

Na altura da morte, confrontamo-nos inevitavelmente com todas as escolhas que fizemos na vida. Costumo dizer que, se você tem um arrependimento e pode voltar atrás, maravilhoso. Mas, se você pega a estrada errada e segue até estar muito doente, já não vai ter combustível para voltar. Aí resta o lamento por não ter vivido o que poderia, seja porque não sabia que era importante ou porque achou que tinha tempo.


Pensar ou falar sobre a morte é uma forma de termos esse confronto mais cedo?

Há pessoas que já são lúcidas no dia a dia e não precisam, e são as que têm uma naturalidade maior em falar. Caso você tenha muito medo da morte, é recomendável que pense sobre isso. Dessa forma, quando a morte chegar, você estará mais seguro de que viveu uma vida boa. Pode até ter medo do processo de morrer mas não de não ter vivido.

São duas coisas diferentes, o medo da morte enquanto medo de não ter vivido bem e o medo da forma como se irá morrer?

Sim. E o processo de morrer deveria ser a maior preocupação das pessoas. As pessoas acham os cuidados paliativos algo mórbido, mas quem trabalha na área percebe que, muitas vezes, é quando iniciamos os paliativos que a vida com “V” maiúsculo tem início e o paciente começa a ser feliz porque só aí reconhece a existência da sua morte. Até àquele momento, ele estava se sentindo fracassado, lutando para atacar e combater a doença, que não está nem aí e sempre segue o seu curso natural.

Usa-se muito a terminologia bélica, como na guerra contra o cancro…

Se encetamos uma guerra, estamos a gastar forças, munições que poderíamos usar para ter uma vida boa, em busca de uma cura que talvez não seja alcançável. A morte não é uma guerra, é uma jornada, um espaço da vida. Muitas pessoas dizem-me “Mas, Ana, eu acredito em milagres!”. Eu também acredito, mas até que o milagre chegue não é necessário tanto sofrimento, perdas financeiras, famílias desestruturadas, pacientes totalmente exaustos por fazerem tratamentos que não levam a nenhum lugar que não seja dor. É muito inquietante que as pessoas tenham coragem de sofrer tanto na luta contra a morte e não tenham coragem de reconhecer que são finitas. Se há sofrimento, então por que não termos um acompanhamento que promova o seu alívio?.

«O cuidado paliativo pode oferecer tempo para encontrar sentido, para viver aquilo que não se teve oportunidade de viver antes da doença»

É essa a função dos cuidados paliativos?

Os cuidados paliativos são uma abordagem que promove o alívio do sofrimento humano em todas as suas dimensões – física, emocional, familiar, social e espiritual –, que atinge as pessoas quando elas têm um diagnóstico de uma doença que ameaça a vida delas. Não é um espaço reservado ao moribundo. A partir do momento que se tem um diagnóstico que ameaça a vida, o sofrimento começa.

Mesmo que ainda não haja sofrimento físico?

Pode não ser ainda físico, pode ser a descoberta de um nódulo suspeito, mas a partir desse momento há sofrimento emocional e a pessoa precisa de ter alguém que olhe para ela para lá da doença. Ela não é um câncer ou um nódulo, uma pessoa emagrecida ou sem cabelos. Ela é uma vida inteira. O profissional de paliativos tem, com a sua equipa, condições para ajudar essa pessoa a ser feliz mesmo durante o tratamento ou a busca pela cura.

Eliminar a dor física é importante porque sem isso não há margem para ser feliz ou procurar o sentido da vida?

Exatamente. Em cuidados paliativos o médico, enfermeiro ou fisioterapeuta vão, antes de mais, ter de fazer o controlo dos sintomas para que o paciente fique confortável. No Brasil ainda há muitos médicos que acham que sabem fazer paliativos porque basta bom senso. Mas, na verdade, é um conhecimento muito técnico. Na faculdade de medicina não se ensina como controlar sintomas de sofrimento, só a tratar doenças. Por isso, muitas vezes, esses médicos acabam a sedar os doentes, fazendo o que se chama de sedação paliativa. É fundamental saber aliviar o sofrimento sem sedar o doente para que ele possa manter a consciência.

O argumento da dor é muitas vezes usado para justificar uma opinião favorável à eutanásia.

Por isso é importante que as pessoas percebam que é possível enfrentar o sofrimento da morte sem dor. Se elas acham que têm de passar por aquilo em carne viva, então pedem a morte. O cuidado paliativo pode oferecer tempo para encontrar sentido, para viver aquilo que não se teve oportunidade de viver antes da doença. Além disso, o paciente irá viver a morte dele no dia certo, não num dia que ele controla. A morte, tal como o nascimento, é um ato de entrega.

Ana Cláudia Arantes: «Quem não pensa na sua morte não vive»

«Escuto muitas vezes “A melhor coisa que me aconteceu foi o câncer”. Porque a iminência da morte convida a viver uma vida que vale a pena, mas como seria mais interessante se a gente não precisasse disso»

É isso a morte natural ou ortotanásia que refere no livro?

Sim, é a ortotanásia, que significa morte no tempo certo, implica não prolongar nem abreviar o tempo do paciente, mas deixá-lo seguir o curso natural. Existe ainda o conceito de kalotanásia, que é a morte bela, uma morte que encontra sentido na história da pessoa. Dou um exemplo: a minha mãe era católica e valorizava muito a família. Faleceu a 19 de março, dia de São José, padroeiro da família. O funeral foi num Domingo de Ramos, para ela a terceira festa mais importante a seguir ao Natal e Páscoa. Ela tinha uma guerra antiga comigo, dizia que eu tinha de comungar ao menos na Páscoa, mas invariavelmente eu trabalhava e acabava não indo na missa nesse dia. Depois de ela falecer, estou a arranjar-me para a missa do sétimo dia e dou-me conta: “Mãe, como você é danada, hoje é Páscoa, vou ter de comungar!”. Isso é kalotanásia, a morte mais linda possível naquela vida. Quando ocorre, tem um enorme poder sobre o luto de quem fica, é um ato de amor.

Fala também da morte como um portal sagrado. Tem uma visão espiritual da morte?

Além de cuidar do sofrimento físico, é função de quem trabalha em cuidados paliativos cuidar da parte emocional e espiritual que é buscar o sentido da vida. Todas as pessoas buscam isso. A espiritualidade é algo inato ao ser humano.

Mesmo as pessoas que dizem não acreditar em nada?

Principalmente essas (risos). Quem acredita em Deus tem uma explicação racional, dentro da sua crença, para o que lhe acontece. Mas para os que não acreditam, qual o sentido?

Como é o confronto com essa pergunta para quem nunca se questionou antes?

No auxílio do sofrimento emocional, oferecemos a nossa escuta. E a maioria das pessoas experimenta grande alívio neste processo porque pode dizer do que tem medo. Se você me diz “Ana, eu tenho medo da morte”, eu não digo “ah, muda de assunto, vira essa boca para lá, tenha fé!”, eu vou dizer “Me conta mais, de que parte da morte você tem medo?”. Eu vou te convidar a ir a um lugar onde você nunca entrou porque nunca foi acompanhada nessa sala escura.

Nem todas as pessoas aceitarão o convite…

A pessoa pode não querer abrir uma porta, mas ainda assim eu fico do seu lado. Na verdade, as pessoas precisam ter uma experiência de companhia. Você pode estar paralisada, mas não está sozinha. Não te vou forçar a ir mais longe do que você dá conta, mas se você olhar para mim e disser “Ana, acha que eu sou capaz de abrir essa porta?”, eu digo “É”. E você talvez abra porque está acompanhada. Há muitos estudos demonstrando que as pessoas que recebem paliativos vivem mais tempo, um tempo de qualidade às vezes melhor do que antes. Escuto muitas vezes “A melhor coisa que me aconteceu foi o câncer”. Porque a iminência da morte convida a viver uma vida que vale a pena, mas como seria mais interessante se a gente não precisasse disso. O meu objetivo com o livro é dizer às pessoas que podem buscar a mesma intensidade na vida sem precisar de estar doente.

Como podemos ajudar alguém próximo que esteja a aproximar-se da morte?

Não se ponha no lugar dessa pessoa. Respeite o sofrimento dela e faça todo o possível para ajudá-la a passar por isso, mas não tome decisões como se fosse você. Ao invés, pergunte, esteja atenta, observe. Nem sempre é preciso falar, por vezes, basta estar presente e fazer companhia. Por vezes, as pessoas dizem-me “Ana, o meu pai está morrendo, o que posso fazer?”. E eu falo “Ame. Só te resta amar.”. Se você deixar o medo do lado de fora da equação, você tem uma experiência incrível de conexão.

O que pensa da prática de omitir a verdade a quem está muito doente para evitar mais sofrimento?

As pessoas fazem isso por amor, mas devem entender que estão a privar o seu ente querido de descobrir ou decidir o que é prioridade para ele naquele momento. É como eu te convidar para ir a uma festa chiquíssima sem te avisar onde vamos. Você vai como está, sem se preparar. Gera-se uma loucura sem sentido, a pessoa está vendo que está doente (ela sempre vê), mas dizem-lhe que está tudo bem, então a única certeza que ela tem é que está muito sozinha. Ninguém é capaz de estar com ela junto à sala escura de que falei antes e isso é muito solitário.

Os familiares também terão medo de enfrentar a morte…

Então eu digo: “Tenha respeito pelo tema da morte, explore esse tema com pessoas com as quais você se sinta mais à vontade por exemplo de se emocionar”. Temos uma fonte de amor dentro de nós que desabrocha quando falamos sobre temas importantes como esse.


Os 5 maiores arrependimentos antes de morrer

Ana Cláudia Quintana Arantes subscreve a lista feita pela enfermeira australiana Bronnie Ware, no livro Antes de Partir (Bertrand).

  1.  Não ter feito escolhas mais verdadeiras para si e ter vivido em função dos outros.
  2. Não ter mostrado mais os sentimentos.
  3. Ter trabalhado demais.
  4. Não ter passado mais tempo com os amigos.
  5. Não se ter permitido ser mais feliz.

 

Última revisão: Março 2019

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