Maria José Rebocho: «Se as pessoas se sentirem mais cansadas, com falta de ar e com os pés inchados, devem procurar o médico»

Maria José Rebocho: entrevista sobre insuficiência cardíaca

Conhecer os sinais de alerta da insuficiência cardíaca é fundamental para detetar precocemente esta doença que é a principal causa de internamento hospitalar em pessoas com mais de 65 anos, defende a médica cardiologista Maria José Rebocho.

  • PorVanda OliveiraJornalista

  • Entrevista aDra. Maria José RebochoMédica cardiologista, membro do Conselho Técnico-Científico da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca (AADIC)

Uma fadiga que surge de forma gradual para um esforço que fazia habitualmente e que antes não existia, a sensação de que não consegue encher completamente os pulmões de ar e o inchaço das pernas e tornozelos são sinais que devem alertá-lo para uma eventual insuficiência cardíaca (IC). Esta doença, que ainda é pouco conhecida dos portugueses, é muito comum, embora muitas vezes se confunda com os sinais que assumimos como normais do envelhecimento. Em entrevista à Revista Prevenir, Maria José Rebocho, médica cardiologista e membro do Conselho Técnico-Científico da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca (AADIC) explica o que todos devem saber sobre a IC para viver mais e com maior qualidade de vida.

Entrevista a Maria José Rebocho, médica cardiologista

O que é exatamente a insuficiência cardíaca?

A insuficiência cardíaca é uma síndrome, isto é, um conjunto de sinais e sintomas que nos devem fazer suspeitar de que o coração não está a bombear o sangue necessário para os órgãos-alvo, como os rins, o fígado e o cérebro, e para os músculos, de acordo com a necessidade do esforço.

Que sinais são esses?

O primeiro sinal de alerta é a fadiga. Uma fadiga que surge para esforços onde não havia anteriormente. O segundo é a falta de ar. Os doentes têm a sensação de que não conseguem encher completamente os pulmões quando fazem algum esforço e podem mesmo sentir a necessidade de colocar mais uma almofada para dormir, porque, quando se deitam, têm alguma falta de ar. Outro sintoma que também é bastante frequente é o inchaço ou edema das pernas e dos tornozelos. E, portanto, se as pessoas se sentirem mais cansadas, com falta de ar e com os pés inchados devem procurar o médico.

A insuficiência cardíaca é pouco frequente abaixo dos 49 anos. Antes dos 50 anos, afeta apenas 1% da população, mas, à medida que idade avança, a prevalência aumenta, atingindo 16% das pessoas com mais de 80 anos, indica Maria José Rebocho

No entanto, “o diagnóstico é habitualmente tardio”, de acordo com o site da AADIC…

Sim. Como os sintomas surgem de forma muito gradual, e sobretudo nas pessoas com mais de 80 anos, o cansaço é muitas vezes encarado como uma consequência normal do envelhecimento ou do aumento de peso e não é valorizado. Também o edema (inchaço) dos pés e tornozelos não é valorizado.

Que outros sintomas podem surgir?

Pode haver sensação de palpitações, tonturas ou mesmo desmaios, que podem ser um sinal de arritmia. Pode também haver uma tossícula ao esforço, que significa que há líquido a mais nos pulmões.

O que é que acontece exatamente no coração quando há insuficiência cardíaca?

A situação mais frequente é haver uma fração de ejeção reduzida, abaixo dos 50 por cento, no ventrículo esquerdo. Ou seja, supondo que o ventrículo esquerdo tem 100 mililitros de sangue e que mantém um volume de 60 mililitros após a sístole (ter bombeado o sangue), significa que tem uma fração de ejeção de 40 por cento e, portanto, que há insuficiência cardíaca. Pode haver insuficiência cardíaca sem que haja redução da fração de injeção, em que o músculo cardíaco fica mais rijo e não relaxa, levando à diminuição no enchimento do coração. Mas a causa mais frequente da IC é a doença das artérias coronárias.

«Se surgirem sintomas de enfarte, não vá para o hospital; chame o 112», recomenda Maria José Rebocho

Em caso de enfarte, como pode ser evitada a insuficiência cardíaca?

Se surgirem sintomas de enfarte, não vá para o hospital; chame o 112. Isto porque o 112 vai levá-lo exatamente para o local onde existe uma vaga para entrar imediatamente numa sala de cateterismo para lhe desentupirem a artéria antes de haver a necrose, ou seja, a morte das células que impede permanentemente o coração de se contrair.

Que outros conselhos são importantes para que os doentes possam evitar chegar à insuficiência cardíaca?

Quem sofre de hipertensão arterial deve cumprir o tratamento diário para mantê-la controlada. Em alguns países, esta é a causa mais frequente de insuficiência cardíaca e sabemos que em Portugal a hipertensão arterial é um problema grave que atinge 33 por cento da população total e 76 por cento da população acima dos 65 anos. Quando a tensão arterial é elevada, o coração tem de fazer um maior esforço para vencer aquela resistência e ao longo dos anos o coração, primeiro, hipertrofia-se, ou seja, aumenta o número de células para tentar ser capaz de continuar a bombear a mesma quantidade de sangue, mas, depois, dilata e a seguir torna-se insuficiente. Contudo, há uma grande percentagem de pessoas que sabem que têm hipertensão arterial mas que a ignora. Há pessoas que vão ao médico e compram os comprimidos, mas não os tomam ou que tomam-nos de forma muito irregular – assim que a tensão normaliza, param com a medicação – e isso é realmente muito preocupante.

Que outras doenças podem levar à insuficiência cardíaca?

As doenças das válvulas cardíacas, como a estenose aórtica, que é característica do idoso ou a que era provocada pela febre reumática, a qual já foi erradicada em Portugal e que por isso só está presente nos doentes com mais de 65 anos que ainda foram afetados pela doença. Depois, há também cardiopatias congénitas que há cerca de 40 anos passaram a ser tratadas através de operação, permitindo que as crianças começassem a sobreviver. Ao fim de 20, 30, 40 anos da correção cirúrgica, pode evoluir gradualmente para insuficiência cardíaca. Da mesma maneira que, quando não se faziam cateterismos na fase aguda do enfarte do miocárdio, as pessoas morriam mais por enfarte; agora, sobrevivem e, portanto, podem ter ao fim de uns anos insuficiência cardíaca. Juntando a estes fatores o envelhecimento da população, é evidente que a insuficiência cardíaca está a aumentar e as previsões nos próximos anos são assustadoras em relação à sua prevalência.

«Os medicamentos atuais aumentam a sobrevivência com significado estatístico. Os doentes vivem mais, melhoram a qualidade de vida e melhoram o funcionamento de outros órgãos-alvo, nomeadamente os rins», indica Maria José Rebocho

É por isso que se estima que a prevalência da insuficiência cardíaca, que afeta cerca de quatro por cento da população, possa aumentar entre 50 e 70 por cento até 2030?

Esses números são baseados num estudo que já tem 20 anos e também extrapolando a partir dos números de outros países da Europa. Mas nós não somos iguais aos outros países da Europa – consumimos mais sal, temos mais hipertensão –, o que quer dizer que a realidade pode até ser pior. No início de 2020, a Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC) propôs-se fazer um estudo para determinar a prevalência da insuficiência cardíaca em Portugal, mas que foi atrasado com a pandemia. O estudo que se chama PORTHOS (Portuguese Heart Failure Observational Study) vai abranger a população com mais de 50 anos numa amostra de 4800 e pensa-se que estará terminado em 2022. Este estudo vai-nos dar números mais recentes.

Como é geralmente diagnosticada a doença?

O diagnóstico da insuficiência cardíaca é basicamente clínico, através dos sinais e sintomas. Primeiro, faz-se a história clínica do doente. Como sempre, a medicina começa por aí. Depois, o exame físico, para ver se há alterações, se há edemas, se o fígado está aumentado; a auscultação cardíaca e pulmonar; e a palpação dos pulsos. Depois temos os exames. Normalmente a sequência é: raio-x ao tórax, eletrocardiograma e depois, se for sugestivo de insuficiência cardíaca, pedimos o eco-doppler. É este exame que vem confirmar o diagnóstico e indicar qual é o tipo de insuficiência cardíaca, de forma a definir o tratamento.

Qual é o prognóstico destes doentes?

Na maior parte dos países, a insuficiência cardíaca é a maior causa de internamento em pessoas com mais de 65 anos. Em Portugal penso que esse estudo não está feito. No total dos internamentos (dados de 2018), a insuficiência cardíaca corresponde a cinco por cento, sendo que as doenças cardiovasculares correspondem a 18 por cento do total dos internamentos. Estes doentes têm muitos reinternamentos se não cumprirem a terapêutica. E em cada internamento por descompensação, as coisas já não voltam atrás; fica sempre um agravamento. A mortalidade por insuficiência cardíaca representa 5,8 por cento de todas as mortes. Os medicamentos atuais aumentam a sobrevivência com significado estatístico. Os doentes vivem mais, melhoram a qualidade de vida e melhoram o funcionamento de outros órgãos-alvo, nomeadamente os rins. Quando os doentes têm uma fração de ejeção inferior a 35 por cento são avaliados para colocar um cardiodesfibrilhador implantável que vai impedir a morte súbita.

A insuficiência cardíaca é mais frequente nas mulheres, mas também sabemos que são as mulheres que têm uma maior esperança de vida, o que pode explicar a maior prevalência, refere Maria José Rebocho

No caso da medicação, o tratamento é para toda a vida?

É para toda a vida. Neste momento, para tratar a IC o doente tem de fazer quatro a cinco medicamentos diferentes por dia.

O tratamento é comparticipado?

É comparticipado. No entanto, os medicamentos mais novos, apesar de terem uma comparticipação de 67 por cento, ainda atingem um valor que, para alguns doentes, pode ter um significado importante. Os doentes com insuficiência económica têm uma comparticipação maior, mas mesmo assim para alguns significa algum peso. Uma das intenções da AADIC é que estes doentes tenham uma maior comparticipação nesses medicamentos.

É possível prevenir a insuficiência cardíaca?

Se pensarmos que as duas causas principais da insuficiência cardíaca são a doença coronária e a hipertensão arterial, a prevenção implica prevenir ou tratar estas duas doenças. Há um fator que não se pode prevenir que é a hereditariedade. Se já tem esse fator de risco, tem de evitar os outros através de um estilo de vida saudável, o controlo dos lípidos, do tabagismo e do álcool.

Última revisão: Maio 2021

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