Gustavo Carona: «Perguntem-se com mais frequência: o que é realmente importante?»

Gustavo Carona, médico especialista em Anestesiologia e Cuidados Intensivos

Gustavo Carona é médico especialista em Anestesiologia e Cuidados Intensivos no combate à pandemia. Antes da COVID-19 a sua luta era outra. Dedicou-se à medicina humanitária nos países sovados por guerras e conflitos. Este é um testemunho que todos devem ler.

  • Recolha de testemunhoCarlos Eugénio Augusto
  • EdiçãoCarmen Silva
  • FotografiaArtur

  • Testemunho deGustavo CaronaMédico especialista em Anestesiologia e em Cuidados Intensivos

Antes da pandemia, Gustavo Carona, médico especialista em Anestesiologia e Cuidados Intensivos, sentiu o apelo de agir, de colocar os seus conhecimentos ao serviço dos mais desprotegidos e daqueles de que, muitas vezes, o Ocidente se esquece. Foi médico nos países sovados por guerras e conflitos, na esperança de que o mundo desperte e tome uma atitude. Depois aconteceu a responsabilidade de contar o que viu no exercício da Medicina Humanitária. Escreveu O Mundo Precisa de Saber (Ego Editora) e falou com a Revista Prevenir sobre a sua experiência. Hoje está em Portugal na primeira linha de combate à pandemia. Pode ainda não ter conseguido mudar o mundo, mas já mudou muitas vidas.

O testemunho de Gustavo Carona

Gustavo Carona, médico especialista em Anestesiologia e Cuidados Intensivos

«A vida prega-nos partidas que demoramos tempo a entender. Quando achei que a minha vida iria ser o bodyboard (que comecei a praticar com 9 ou 10 anos e, aos 14, já participava em campeonatos europeus de seniores), um mergulho despretensioso no mar fez-me abdicar do meu sonho. Bati com a cabeça numa rocha e magoei as costas. No dia em que fiz 15 anos, depois de correr inúmeros médicos, um disse-me: “não vais voltar ao mar”. Não sei se conseguem imaginar o choque que foi. Eu era um miúdo, daqueles que adorava desporto, e a notícia de que o bodyboard era um capitulo da minha vida que tinha de encerrar abalou-me, deitou-me ao chão. Mas das cinzas renasci: a tristeza que outrora me deixara em baixo serviu de alavanca para me levantar. Foi essa mesma tristeza, a de miúdo cheio de força que queria conquistar o mundo com a prancha debaixo do braço, que me levou a querer estudar o suficiente para ser médico. A medicina não tinha cura para o meu problema e eu não queria que mais ninguém sentisse a frustração que eu sentira. Decidi, por isso, abraçar como missão ajudar aqueles que se viessem a cruzar no meu caminho, em cujo lugar eu já tinha estado.»

«Aquilo que, muitas vezes, nos falta na vida é fazermos as perguntas certas. O que é que realmente tem valor? Ter uma casa melhor, um telefone topo de gama ou termos valores, vivermos em liberdade e ajudarmos as pessoas?», pergunta-nos Gustavo Carona

O ponto de viragem

«Entrei em Medicina com vontade de estar ligado ao desporto. Mas, com o passar do tempo, pareceu-me um bocadinho fútil que a minha vontade de ser médico fosse para alimentar sonhos de rapazes que queriam ser campeões do mundo quando a medicina pode salvar vidas. Isto levou-me a canalizar o meu interesse para outras áreas. Comecei a construir e a alimentar a vontade de salvar vidas. No final da faculdade, já tinha o bichinho pela medicina humanitária, mas foi na minha primeira viagem a África, mais concretamente a Moçambique, em 2007, que senti completamente o apelo para ir para o terreno. Na altura, já era médico, estava no segundo ano da especialidade, e nunca tinha contactado com tanta pobreza, o que mexeu comigo. O que vi fez-me questionar como e que podia “desperdiçar” os meus saberes e as minhas competências quando estas podem ser cruciais para tanta gente. Em Portugal, sou somente mais um médico, porque há muitos, mas, em alguns locais do planeta, o que sei pode fazer a diferença. Aí, as pessoas morrem por doenças e problemas de saúde que cá já não nos assustam. O espetro do sofrimento e imenso e, por isso, o impacto da medicina e muito maior.»

«Quando me perguntam o que é preciso para abraçar uma missão desta natureza, respondo “é preciso querer muito, mas muito mesmo”», conta Gustavo Carona

A primeira missão de Gustavo Carona

«Tinha de ir, tinha de fazer a diferença. Não podia mudar o mundo inteiro, mas podia mudar algumas vidas. Ao fim de um ano e meio, depois de muitos emails enviados e de outro tipo de contactos, consegui concretizar, finalmente, a minha primeira experiência humanitária com a Médicos do Mundo Portugal, em Moçambique. Hoje, olhando para trás e tendo em conta as missões que fiz, a primeira foi muito introdutória e ligeira, mas foi importantíssima. Ainda me lembro da sensação incrível que me invadiu quando recebi a notícia de que ia integrá-la, sentia-me capaz de abraçar o desafio e queria muito fazê-lo. Aliás, quando me perguntam o que é preciso para abraçar uma missão desta natureza, respondo “é preciso querer muito, mas muito mesmo”.»


Ser mais médico

«Vim de Moçambique empenhado em ser mais médico, mais clínico, sobretudo nas áreas que domino, na altura anestesia, pois ainda não tinha formação em cuidados intensivos. Tinha uma plataforma de conhecimento que queria distribuir e, por isso, assim que cheguei a Portugal, comecei de imediato à procura de organizações que me permitissem utilizar o que sabia e tinha aprendido ao máximo e nos locais onde fossem precisos. Foi aí que percebi quem era a Médicos Sem Fronteiras e achei que os meus sonhos passavam por esta organização. Enviei currículos, carta de motivações, fui até Bruxelas para ser entrevistado e finalmente o sonho tornou-se realidade. Depois de, em fevereiro, ter estado em Moçambique, em julho, partia novamente em missão, desta vez pela Médicos Sem Fronteiras, para a República Democrática do Congo (RDC). Seguiram-se outros destinos: Paquistão, Afeganistão, Síria, República Centro-Africana (RCA) e até Iraque.»

«O primeiro passo é tomar consciência e olhar para as pessoas. Atrevam-se a fazê-lo e depois digam-me que as histórias delas não vos tocam», sugere Gustavo Carona

Perder vidas

«A primeira missão na RDC durou quatro meses, em que fui o anestesista de um hospital de referência que englobava um raio de centenas de quilómetros, numa zona de conflito, onde só fazíamos cirurgias urgentes. Às tantas, dei por mim a ser invadido por uma solidão clínica enormíssima, sem ninguém para partilhar dúvidas, sem poder recorrer à Internet, só com os meus livros e com a vontade de dar o melhor de mim. Durante este escasso tempo, passaram-me muitas vidas pelas mãos. E aquilo que para a maioria dos médicos é um acontecimento traumático e raríssimo, o de perder a vida de alguém, sobretudo em situações em que, digamos, é fácil tratar. A mim aconteceu-me dezenas de vezes porque trabalhava em condições muito básicas e os doentes chegavam em estados extremos. Perguntava-me por que motivo o mundo não falava sobre esta guerra, a maior desde a Segunda Guerra Mundial…. Perguntava-me porque tratamos estas vidas humanas como lixo. Aqui, achamos que o centro do mundo são os impostos, o Porto, o Benfica, o Sporting… também adoro futebol, mas, quando estamos nestes países, percebemos que aquilo com que nos deparamos e que é o centro do mundo, porque estas pessoas vivem num mundo inimaginável para muita gente, onde, por exemplo, a dimensão da violência sexual e de uma tristeza arrebatadora.»

Gustavo Carona, médico especialista em Anestesiologia e Cuidados Intensivos

Tomar consciência

«Após conhecer estas realidades, o que mais me entristece é a hipocrisia do mundo em que vivemos e sentir que não se dá valor às vidas humanas de igual modo. Quando lá estamos, não sentimos que estas pessoas sejam menos importante do que nós. Isto leva-nos à questão do que podemos fazer enquanto cidadãos. O primeiro passo é tomar consciência e olhar para as pessoas. Atrevam-se a fazê-lo e depois digam-me que as histórias delas não vos tocam. Olhem para a cara de um congolês, de um centro-africano, de um somali, sentem-se à mesa com eles e depois digam-me que não querem fazer nada sobre o que lhes está a acontecer… Aquela frase do “ah, não posso fazer nada”, definitivamente, não pode existir no nosso vocabulário.»

«Há quem precise de passar por eventos fortíssimos para olhar para trás e perceber que estivera toda a vida enganado», refere Gustavo Carona

O que realmente importa segundo Gustavo Carona

«Aquilo que, muitas vezes, nos falta na vida é fazermos as perguntas certas. O que é realmente importante? O que é que realmente tem valor? Ter uma casa melhor, um telefone topo de gama ou termos valores, vivermos em liberdade e ajudarmos as pessoas? Muita gente só aprende a dar valor a vida depois de uma doença grave. Há quem precise de passar por eventos fortíssimos para olhar para trás e perceber que estivera toda a vida enganado. E vemos acontecer histórias destas constantemente. Mas, na verdade, ninguém precisa disso para acordar para o que verdadeiramente importa. Por isso, perguntem-se com mais frequência “o que e realmente importante?”. A minha resposta é: a nossa humanidade.»

Última revisão: Fevereiro 2019

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