Eutanásia: sim ou não à morte assistida?

Eutanásia: sim ou não à morte assistida?

Seis especialistas na área da medicina, bioética e religião ajudam-nos, através da sua posição pessoal, a refletir sobre a questão da eutanásia ou morte assistida.

  • PorBárbara BettencourtJornalista

  • ColaboraçãoDra. Isabel Ruivo Médica pediatraDr. João Ribeiro SantosMédico nefrologista e coautor do Manifesto do Movimento Cívico Direito a Morrer com DignidadeProf. Manuel Luís Capelas Presidente da Associação Portuguesa de Cuidados PaliativosProf. Paulo Borges Professor de Filosofia da Religião na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e ex-presidente da União Budista PortuguesaProf. Dr. Rui Nunes Presidente da Associação Portuguesa de BioéticaPadre Vítor Feytor Pinto Mestre em bioética, ex-membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da VidaDr. Vítor Viegas Cotovio
    Médico psiquiatra e psicoterapeuta

Eutanásia: sim ou não? O tema é fraturante e as opiniões sobre a morte assistida dividem-se. Um manifesto a favor da despenalização e regulamentação da eutanásia conseguiu pôr o tema na ordem do dia e centrar atenções numa petição pública que reuniu cinco mil assinaturas, garantindo que, assim, o debate seja feito na Assembleia da República. Seis especialistas na área da medicina, bioética e religião ajudam-nos, através da sua posição pessoal, a refletir sobre uma questão profunda, para a qual não existe apenas uma leitura.

Os conceitos: da eutanásia ao suicídio assistido

Eutanásia Morte intencional de um doente, a seu pedido firme e consistente, através da intervenção direta de um profissional de saúde, por exemplo, pela administração de um fármaco.

Suicídio medicamente assistido Quando o fármaco disponibilizado é autoadministrado pelo próprio doente.

Ortonásia Morte natural, sem uso de tratamentos fúteis, promovendo o máximo de conforto e qualidade de vida.

Distanásia Continuar a utilizar estratégias terapêuticas e exames que não representem benefício para o doente.

Sedação paliativa Intervenção médica para providenciar alívio. Pode variar em intensidade, desde sedação ligeira até à inconsciência total. Com a sedação em doentes terminais (uso de fármacos para aliviar sintomas causadores de sofrimento intolerável, que não foram passíveis de alívio por outros meios num período de tempo aceitável) pretende-se, geralmente, o alívio da dor e do sofrimento, não sendo a morte intencionalmente desejada.

Sim à eutanásia ou morte assistida

Os argumentos de Isabel Ruivo, médica pediatra, João Ribeiro Santos médico nefrologista e coautor do Manifesto do Movimento Cívico Direito a Morrer com Dignidade e de Paulo Borges, professor de Filosofia da Religião na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e ex-presidente da União Budista Portuguesa.

«A morte assistida permite que seja respeitada a última liberdade do paciente»

Dra. Isabel Ruivo, médica pediatra

Dra. Isabel Ruivo
Médica pediatra

«Em Portugal, já se avançou muito na legislação que protege a autonomia da pessoa doente, com a obrigatoriedade da obtenção de consentimento informado para atos médicos, o direito do doente a recusar tratamentos e o Testamento Vital. Mas há situações que ainda não foram ponderadas. Imaginemos dois jovens que têm um acidente. Um deles fica paralisado do pescoço para baixo e o outro, além dessa paralisia, devido a uma lesão mais grave, só consegue respirar com o auxílio de um ventilador. Se, ao fim de anos de reabilitação intensiva, ambos considerarem a situação de total dependência incompatível com uma vida digna, o segundo jovem poderá pedir que o ventilador seja desligado, sendo assim ajudado a morrer, mas, no caso do primeiro jovem, essa possibilidade, hoje, não existe. No caso de pessoas com doenças incuráveis, a sedação paliativa contínua e profunda, que os cuidados paliativos propõem, implica uma depressão do estado de consciência, que torna o doente incapaz de se relacionar com a família e com a equipa médica, podendo prolongar-se durante dias. A fronteira que separa a sedação profunda e contínua, neste caso, e a eutanásia é tão ténue que é urgente refletir sem preconceitos sobre este problema. Muitas vezes, noutros contextos de fim de vida, o doente não é informado sobre as opções que lhe restam nem lhe é perguntada a opinião ou pedido o consentimento. Ao propor a possibilidade da morte assistida a pedido do próprio, informado, consciente e reiterado, para doentes em sofrimento intolerável, estamos a pedir que seja respeitada, de forma compassiva, a sua última liberdade.»

«O médico tem de defender a vida e o bem-estar dos pacientes, mas os dois aspetos podem colidir»

Dr. João Ribeiro Santos, médico nefrologista e coautor do Manifesto do Movimento Cívico Direito a Morrer com Dignidade

Dr. João Ribeiro Santos
Médico nefrologista e coautor do Manifesto do Movimento Cívico Direito a Morrer com Dignidade

«Se a pessoa decide lucidamente que quer morrer, deve poder fazê-lo. Temos o direito a morrer. Sou ateu e, em termos de direitos constitucionais, entendo que o direito à liberdade e autonomia são superiores ao direito à vida. Se a vida é nossa, podemos dispor dela, isto está consagrado na nossa Constituição. Considero que chamar a esta discussão o tópico dos cuidados paliativos não faz sentido: de facto, há pessoas que, recebendo cuidados paliativos, não querem morrer, mas também há pessoas que, nas mesmas circunstâncias, o desejam. Noutros casos, podem nem querer receber cuidados paliativos. Do ponto de vista do código deontológico do médico, este profissional tem de defender a vida e o bem-estar dos pacientes, mas os dois aspetos podem colidir. Trata-se de um código de comportamento e não de uma bíblia, pelo que pode e deveria ser revisto.»

«Cada caso deve ser considerado na sua especificidade»

Paulo Borges, Professor de Filosofia da Religião na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e ex-presidente da União Budista Portuguesa

Prof. Paulo Borges
Professor de Filosofia da Religião na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e ex-presidente da União Budista Portuguesa

«A escolha sobre continuar ou não a viver em condições de grande sofrimento é um direito individual que deve ser reconhecido pela lei. Em função da minha visão budista do mundo, considero que toda a forma de vida é sagrada, independentemente das suas condições físicas e psicológicas. Sendo assim, é sempre melhor evitar interromper o seu curso natural. Mesmo sujeita a condições de grande sofrimento, a vida humana pode sempre ser convertida numa experiência evolutiva, ao ser aceite como a maturação e esgotamento de um processo kármico e como oportunidade de desenvolver compaixão por todos os que passam por sofrimento. Enquanto a consciência estiver lúcida, pode haver progresso espiritual, mesmo e sobretudo nas condições mais difíceis. Todavia, cada caso deve ser considerado na sua especificidade. Se a intenção da pessoa se baseia no reconhecimento de que do sofrimento não há qualquer possibilidade de resultar algo positivo, ou que resulta num maior sofrimento para os outros, então a eutanásia pode justificar-se.»

Não à eutanásia ou morte assistida

Os argumentos de Vítor Viegas Cotovio, médico psiquiatra e psicoterapeuta, Manuel Luís Capelas, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos e do padre Vítor Feytor Pinto, mestre em bioética, ex-membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida

«Devemos sempre tentar matar o sofrimento e não o sofredor»

Vítor Viegas Cotovio, médico psiquiatra e psicoterapeuta

Dr. Vítor Viegas Cotovio
Médico psiquiatra e psicoterapeuta

«Entendo que a vida não se esgota na materialidade; é algo que enquadro num conceito de espiritualidade, ainda que não necessariamente associado à religião ou a qualquer ideologia. Enquanto psicoterapeuta, o meu trabalho é ajudar as pessoas a dar sentido à vida e entendo que devemos sempre tentar matar o sofrimento e não o sofredor. Respeito a legitimidade de uma pessoa que, perante o seu sofrimento, acha que não consegue geri-lo, mas é possível dar sentido à vida até em circunstâncias extremas de sofrimento. Muitas pessoas que pedem para morrer, quando têm cuidados paliativos (que, além de evitar o sofrimento físico, incluem o acompanhamento psicológico e/ou espiritual), deixam de querer morrer. Se as pessoas não tiverem receio de ser um fardo e se tiverem uma relação significativa não quererão morrer. Havendo eutanásia, estas circunstâncias teriam de ser acauteladas para não haver abusos, como já houve nalguns países em que é permitida. Há uma incapacidade da sociedade atual em lidar com o sofrimento e a morte, mas sofrimento pode permitir a superação e a transcendência, algo que aprendi pessoalmente. Quem é a favor da eutanásia fala num direito inalienável à liberdade, mas a sociedade proíbe andar de mota sem capacete ou de carro sem cinto; até nestes casos se coloca a vida acima da liberdade. Receio também o efeito “descartável” associado a esta medida. No momento final, do que temos necessidade é que estejam connosco. É a relação pessoa a pessoa que dá significado à vida.»

«É mais importante e prioritário aliviar o sofrimento de quem o vivencia»

Manuel Luís Capelas, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos

Prof. Manuel Luís Capelas
Presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP)

«Antes de se pensar em assumir a decisão de matar quem sofre, é humano, técnica e eticamente mais importante e prioritário aliviar o sofrimento de quem o vivencia. A prioridade deveria ser o desenvolvimento de serviços de cuidados paliativos que garantam a acessibilidade de todos, com a qualidade exigida. O manifesto não quer acabar com o sofrimento, quer que seja aprovada a possibilidade de matar quem sofre. Caso esta legislação seja aprovada, a relação profissional de saúde/doente nunca mais será a mesma. É preciso informar as pessoas do que se tem passado nos países onde está legalizada. O não respeito pelas normas tem sido frequente. Se nesses países até se decide matar por pretensa compaixão, mesmo sem o pedido do doente, como podemos ser tão ingénuos e pensar que cá seríamos muito respeitadores de todas as normas? Também importa refletir o que esta prática gerará nos profissionais de saúde. Creio que surgirão muitos impactos negativos.»

«A dor resolve-se com cuidados paliativos; o sofrimento resolve-se com relação»

padre Vítor Feytor Pinto, mestre em bioética, ex-membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida

Padre Vítor Feytor Pinto
Mestre em bioética, ex-membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV)

«O primeiro grande valor ético é o valor da vida. Para usar este valor tenho de ter vida. A eutanásia acaba com o sofredor, não com o sofrimento. Aliás, o manifesto comete um erro ao falar em “morte assistida”, quando o que defende é a precipitação da morte. Eu defendo a morte assistida, isto é, a morte acompanhada, mesmo antes de os cuidados paliativos entrarem em cena: a morte deve ser clinicamente acompanhada, deve haver cuidados de compaixão pela família e equipa médica, e cuidados espirituais e religiosos. Temos de distinguir dor e sofrimento: a dor resolve-se com cuidados paliativos; o sofrimento resolve-se com relação. Conheço pessoas, nomeadamente saudáveis, em sofrimento atroz, mas não vou ajudá-las a morrer, vou ajudá-las a resolver o problema, a minha missão é essa. Depois, hoje há pouca tolerância ao sofrimento. Pratica-se, até, uma “eutanásia social”, por exemplo quando se põe o pai ou a mãe num lar e se vai lá uma vez por ano, porque não somos capazes de aceitar o nosso sofrimento. Temos de ser capazes de dar sentido à vida em todas as etapas e a morte é o seu último estádio. Se não soubermos dar sentido à vida, não conseguiremos dá-lo ao momento da morte. Cabe à sociedade ajudar as pessoas a enfrentar o sofrimento, dando dignidade à vida, essa é uma exigência da nossa relação humana. Além disso, o Estado tem o dever de ter unidades de paliativos em todos os hospitais. Legalizar a eutanásia pode cair numa forma de libertação económica desta responsabilidade do Estado.»


Eutanásia: fazia sentido fazer um referendo?

Sim

«A partir do momento em que surgiu um manifesto assinado por um conjunto alargado de personalidades da nossa sociedade, é inevitável a realização de um amplo debate. O tema não foi abordado nas eleições legislativas, pelo que não existe legitimidade democrática para legislar sobre este assunto sem ouvir os portugueses. A Constituição afirma o princípio da inviolabilidade da vida humana, pelo que uma inversão de paradigma constitucional, com a correspondente alteração do código penal, necessita de uma ampla base de apoio popular. O referendo impede que o tema seja instrumentalizado com objetivos político-partidários», defende Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética.

Não

«Os direitos fundamentais não são referendáveis», considera Paulo Borges, professor de Filosofia da Religião. Uma opinião partilhada por João Ribeiro Santos, médico: «A eutanásia inclui-se no direito à liberdade de consciência e de convicção». Isabel Ruivo, pediatra, concorda que «estamos a falar da liberdade de poder pedir um ato de compaixão, a nossa morte, e isto é algo sobre o qual os outros não devem poder opinar. E seria difícil conceber uma pergunta simples passível de sim e não». A este problema acresce a desinformação, refere o psiquiatra Vítor Cotovio: «Os referendos só fazem sentido quando as pessoas estão devidamente informadas. Há muita iliteracia neste tema, mesmo em relação aos conceitos básicos».


Testamento vital: o que é?

É o documento legal que permite que indiquemos, antecipadamente, se queremos ou não que medidas terapêuticas (como ser ou não submetido a medidas de alimentação e hidratação artificiais que visem retardar o processo natural de morte) sejam administradas em circunstâncias em que não estejamos capazes de expressar a nossa vontade, por exemplo, no contexto de doença terminal ou acidente. Depois de preenchido, idealmente sob aconselhamento médico, deve ser entregue no centro de saúde.


A eutanásia ou morte assistida no mundo

Estes são os países onde a eutanásia ou suicídio assistido estão despenalizados

Eutanásia e suicídio assistido

  • Holanda
  • Luxemburgo
  • Canadá

Eutanásia

  • Colômbia
  • Bélgica

Suicídio assistido

  • Alemanha
  • Suíça
  • EUA (alguns estados)
Última revisão: Abril 2016

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