Miguel Vasques: «O jejum intermitente pode ser um aliado da saúde»

jejum intermitente: Miguel Vasques, médico endocrinologista

A curiosidade clínica sobre o jejum intermitente tem crescido e as dúvidas sobre os seus benefícios vão dando lugar a certezas. Entre o otimismo e a moderação, o médico endocrinologista Miguel Vasques revela o que a ciência já apurou sobre este modelo alimentar e as vantagens de adotar esta estratégia.

  • PorCarlos Eugénio AugustoJornalista
  • FotografiaArtur

  • Entrevista aDr. Miguel VasquesMédico endocrinologista na Fundação Champalimaud e professor na NOVA Medical School, da Universidade Nova de Lisboa

O jejum intermitente está na ordem do dia, mas ainda existem reticências sobre as suas vantagens para o organismo. Têm sido realizadas pesquisas pré-clínicas a nível internacional, sendo que uma delas, publicada no The New England Journal of Medicine, concluiu que esta intervenção nutricional demonstrou um amplo espectro de vantagens para vários problemas de saúde. Para saber o que a evidência científica já comprovou sobre o jejum intermitente, a Revista Prevenir falou com Miguel Vasques, médico endocrinologista e confesso defensor do jejum intermitente. Apesar de confiante, apela a alguma contenção: «ainda temos um longo caminho a percorrer, sendo necessários mais estudos, principalmente em humanos, pois a maioria das pesquisas e ensaios foram realizadas em animais e num espaço temporal curto». Ainda assim, mediante os resultados, «tudo indica que o jejum intermitente pode ser um aliado da saúde no seu todo».

Grande entrevista Miguel Vasques, médico endocrinologista

jejum intermitente: Miguel Vasques, médico endocrinologista

O que a ciência já comprovou sobre as vantagens do jejum intermitente para o organismo?

Ainda estamos numa fase inicial de descoberta, mas os estudos demonstram que existe boa evidência sobre o potencial desta estratégia em várias áreas da saúde. No entanto, subsistem limitações importantes, pois as pesquisas são curtas e heterogéneas e os protocolos mudam muito. Outro desafio é lidar com a própria definição de jejum intermitente, bem como planeá-lo de forma assertiva. Mas faz parte da evolução e esperamos, em breve, transpor o que sabemos para a prática clínica corrente.

O que é exatamente o jejum intermitente?

Falamos de uma intervenção em que há restrição de ingestão, podendo, ou não, implicar corte de calorias. Ou seja, a alimentação faz-se num intervalo de tempo predeterminado, implicando um jejum que se pode prolongar por oito a 16 horas, no próprio dia ou ao longo da semana, em dias alternados, restringir-se a dois dias por semana ou até a todos, face a uma alimentação mais flexível, em que, a partir de determinada hora, a ingestão fica “proibida”. Cada tipo de jejum intermitente (ver caixa) resulta de uma prescrição pensada, gradual e em função do doente e respetivos hábitos. Depois, e para que funcione, tem de se ter em conta o número de horas em que não existe ingestão, pois a troca de um metabolismo muito glucídico (açúcares), para outro de maior metabolização de lípidos (gorduras) implica não comer durante, pelo menos, oito horas, algo que está bem definido há bastante tempo.

Esta filosofia contraria o que se defendeu durante décadas, ou seja, comer de três em três horas para estimular o metabolismo?

Durante muito tempo defendeu-se uma dieta polifracionada, fazendo pequenas refeições ao longo do dia para evitar um maior aporte calórico, já que essa estratégia promoveria a saciedade. Isso ainda continua a fazer sentido em algumas doenças, mas não noutros casos, pois percebeu-se que existem outras intervenções mais eficazes e com outros objetivos, seja o jejum intermitente ou a dieta mediterrânica, que está longe de ser um regime que defenda comer de três em três horas.

Nesse sentido, quais os objetivos do jejum intermitente?

A ideia é potenciar a produção de corpos cetónicos, moléculas que resultam da utilização e mobilização de gordura armazenada e que, num período de maior jejum, são transformadas em fonte energética, evitando o recurso à glicose (açúcar).

E o que o difere de uma dieta de perda de peso?

Falamos de conceitos diferentes. Uma dieta dita normal passa, muitas vezes, por uma restrição calórica, enquanto no jejum intermitente não há necessariamente essa condição, nem a noção de “alimentos proibidos”, baseando-se na tentativa de atingir determinado aporte calórico definido em consulta. É importante sublinhar que não se pode resumir o jejum intermitente a períodos de restrição noturna e ao período da manhã, quando já existe evidência científica da importância de fazer jejum intermitente sincronizado com o horário solar. Por isso, não faz sentido comer imenso entre tarde e noite, e nada durante o início do dia, pois até pelo nosso padrão hormonal é fundamental sincronizar a ingestão e o horário solar. Esse desconhecimento é um exemplo dos muitos erros praticados ao fazer jejum intermitente, e que levam a maior parte das pessoas a desistir, por não atingir objetivos perante propostas apressadas e desajustadas, quando o que se pretende é, à semelhança de qualquer terapêutica, que se prolongue no tempo.

jejum intermitente: Miguel Vasques, médico endocrinologista

«Em média são necessárias de 12-24 semanas  para avaliar os potenciais benefícios do jejum intermitente e se é necessário fazer ajustes», explica Miguel Vasques, médico endocrinologista

Está definida uma duração até que o jejum intermitente dê resultados?

Com a aplicação do jejum intermitente durante 12-24 semanas, há benefícios no controlo do peso e da diabetes, na sensibilidade à insulina ou na retirada de gordura do fígado (fígado gordo). A nível cardiovascular, regista-se a diminuição da gordura no coração e pâncreas. Apesar disso, ainda não é possível dizer que um tipo de jejum intermitente é indicado para uma patologia em específico. Mas, mais do que pensar o jejum intermitente para uma qualquer doença, o desafio é destiná-lo a um tipo de pessoa, tendo em conta o estilo de vida e o que se consegue “negociar” para melhorar a alimentação e, por conseguinte, a saúde. Também por isso, o que me fascina no jejum intermitente é a capacidade de o ajustar mediante o objetivo, tal como acontece quando se receita um fármaco, em que é necessário verificar como se toma, quais as reações ou ajustar a dose.

O que acontece ao organismo enquanto fazemos jejum?

Sabe-se que, após dez a 12 horas de jejum, os níveis de insulina começam a cair. Quando isso acontece, a gordura que se acumulou no tecido adiposo, sob a forma de triglicerídeos (cadeias de gordura e açúcares), entra na corrente sanguínea, passa pelo fígado e é metabolizada em corpos cetónicos. Isso “poupa” o açúcar que segue para o coração ou cérebro, passando os triglicerídeos a servir de energia. Significa que estamos a trocar o tipo de combustível do organismo de açúcar pela gordura, o que potencia a perda de peso. Ou seja, baixa-se a atividade pancreática e a segregação de insulina, perde-se peso e o colesterol cai, como os níveis da glicose e insulina.

O jejum intermitente já está a ser usado como ferramenta profilática na medicina preventiva?

Já foram feitas pesquisas com pré-diabéticos, mediante quadros de obesidade, excesso de peso ou fígado gordo, com resultados interessantes, tendo em conta que não houve evolução. Também foram realizadas investigações na área oncológica cujos dados preliminares apontam para que possa existir benefício em doentes sobreviventes de neoplasias, nomeadamente perante sequelas impostas pelos tratamentos. Nas doenças neurológicas, temos dados preliminares em estudos de curta duração que também apontam que o jejum intermitente, com restrição calórica, quando comparado com uma vulgar dieta, proporciona um menor atraso degenerativo- -cognitivo, em especial em doentes com Alzheimer numa fase muito inicial. Apesar destes dados positivos, é prematuro afirmar um benefício real e efetivo na prevenção de doenças, pois estamos ainda longe de afirmar que existe uma relação direta.

Esses benefícios podem, no futuro, fazer com que o jejum intermitente se assuma como uma ajuda no controlo ou tratamento de algumas doenças, numa perspetiva de intervenção multidisciplinar?

Acredito que sim, já que há evidência da intervenção do jejum intermitente no sistema metabólico, a nível da perda de peso, resistência à insulina e pré-diabetes, além de ser um aliado a nível cardiovascular, na redução da pressão arterial e na melhoria do funcionamento cardíaco. Alguns estudos revelaram que um jejum intermitente personalizado pode, na fase inicial de algumas doenças, conseguir até revertê-las em conjugação com outras terapêuticas. No futuro, isso pode ser sinónimo de um caminho revolucionário na redução da toma de fármacos.

Podemos dizer que esses exemplos de sucesso podem servir como “jurisprudência” clínica?

Sem dúvida. Mas convém perceber que, neste momento, ainda não há certezas absolutas em relação à intervenção clínica do jejum intermitente. Há mesmo situações em que dois doentes com quadros muito idênticos não reagem da mesma forma ao jejum intermitente, resultando num caso e noutro não.

Sabe-se em que casos este regime alimentar pode ser contraproducente?

Nessa perspetiva há mais certezas. Por exemplo, em casos de doença oncológica ativa, nada indica que o jejum intermitente seja benéfico. Também nas formas mais avançadas de diabetes e em doentes insulinodependentes não é recomendado, em especial no contexto da diabetes. Como os doentes não produzem insulina, a capacidade de o organismo fazer shift do metabolismo glucídico para corpos cetónicos é bastante rápida, elevando o risco de não se conseguir parar a resposta a essa dinâmica. Essas substâncias podem subir para níveis preocupantes e não existe insulina que trave essa progressão, o que pode dar origem a uma cetoacidose diabética, um problema gravíssimo.

jejum intermitente: Miguel Vasques, médico endocrinologista

A área da perda de peso é a que mais se tem associado aos benefícios do jejum intermitente. No entanto, mesmo as conclusões dos estudos são contraditórias.

Alguns ensaios não tiveram sucesso, sendo mesmo desapontadores, pois não foi identificado nenhum benefício face ao controlo. No entanto, convém referir que existem muitas diferenças entre os protocolos, o que não quer dizer que não se consiga até perder peso, e na base disso pode estar o facto de a pesquisa ter sido curta. Ainda assim, a maioria dos estudos realizados concluíram que o jejum intermitente ajuda a perder peso de forma controlada e saudável.

O facto de se interromper a ingestão durante dez, 12 ou mais horas não pode desregular o controlo de apetite?

Não, até porque os corpos cetónicos diminuem ligeiramente o apetite. Normalmente, os casos de descontrolo, como por compulsão, não se relacionam com o número de horas sem comer mas com outros tipos de patologias em quem tem excesso de peso ou obesidade, que muitas vezes estão por diagnosticar. A depressão e a ansiedade, por exemplo, são muitíssimo prevalentes em doentes com compulsão alimentar e isso torna mais evidente esse padrão.

Estão identificados os alimentos aconselhados e a evitar após o jejum intermitente para não prejudicar a dinâmica nutricional pretendida?

Por norma, aconselha-se o mesmo que para toda a população: evitar gorduras ou açúcares refinados. São alimentos que não nos fazem bem, independentemente de se seguir ou não jejum intermitente. Este diz mais respeito ao horário em que é feita a refeição e ao período de não ingestão, do que ao que se come.

Quais as vantagens a longo prazo do jejum intermitente face a uma dieta restritiva?

Só conseguiríamos responder depois de estudos comparativos e, tanto quando sei, isso ainda não foi feito. O que dispomos é de ensaios com jejum intermitente e intervenção convencional em que há superioridade do jejum intermitente quando o objetivo é perder peso. Mas são casos muito específicos para afirmar já um “vencedor”. No futuro saberemos mais, mas o otimismo é enorme.

Sistema imunitário (mais) funcional

Alguns estudos avaliaram a influência positiva do jejum intermitente no sistema imunitário e «sabemos que melhora o seu funcionamento – não querendo dizer que o torna mais forte – em doentes com síndrome metabólica», diz Miguel Vasques. A sua atuação prolongada está «associada à redução da inflamação do organismo, algo transversal em doentes com diabetes, excesso de peso ou obesidade».


Tipos de jejum intermitente

Miguel Vasques, médico endocrinologista, identifica os protocolos mais comuns e utilizados em investigação.

  • Time-restricted eating
    «Envolve um período em que há ingestão e em que, normalmente, existe um pequeno-almoço e a última refeição do dia é entre as 17h00 e as 18h00. Neste caso, há apenas um controlo das horas, mas a pessoa come o que quiser.»
  • 5:2
    «O jejum intermitente é realizado em cinco dias definidos por semana, nos quais se promove a cetogénese, e jejum absoluto ou parcial nos outros dois dias, sejam consecutivos ou não. Há restrição de aporte calórico e uma definição do intervalo entre refeições.»
  • Dias alternados
    «Num dia, faz-se uma dieta “normal”, tendo em conta o padrão alimentar individual, e no dia seguinte jejua-se completamente ou faz-se uma pequena refeição.»

Jejum intermitente: o passo a passo

Miguel Vasques apresenta os principais desafios e recomendações para quem quer experimentar esta estratégia nutricional.

  1. Contacte um especialista. «Só através do trabalho clínico de um nutricionista é possível alcançar um bom planeamento, pois o protocolo é sempre afinado mediante o perfil do doente e o seu estilo de vida. Por isso, esqueça a ideia de “copiar” um amigo ou replicar o que leu online. Se for necessário cortar nas calorias, o primeiro passo será consultar um nutricionista, que após um inquérito alimentar sobe o que come no dia a dia poderá fazer um ajuste equilibrado e saudável.»
  2. Definir a duração. «Fase em que se decide os períodos de ingestão e jejum. Nas primeiras semanas é difícil tolerar, pois a paragem de ingestão é prolongada e pode gerar mal-estar. Por isso, começa-se com uma restrição calórica pequena numa janela de tempo maior, que muda ao longo da aplicação do jejum intermitente.»
  3. A importância da reavaliação. «Deve ser combinada no início do processo, para ter melhor controlo do mesmo, e verificar se é preciso fazer ajustes. Por norma, só após seis meses é que se sabe se o jejum intermitente está ou não a dar resultados. Caso esteja tudo bem, define-se até quando prolongá-lo.»
Última revisão: Novembro 2022

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