José Castro Lopes: «As pessoas pensam que o AVC só acontece aos outros»

José Castro Lopes: «As pessoas pensam que o AVC só acontece aos outros»

O acidente vascular cerebral é a principal causa de morte em Portugal, mas 90 por cento dos casos podem ser evitados. José Castro Lopes, médico neurologista e fundador da Sociedade Portuguesa de AVC, apela para que nos foquemos no que é essencial: abrandar o ritmo de vida e alterar hábitos como dormir mal, fumar ou seguir uma dieta desequilibrada.

  • PorFátima Lopes CardosoJornalista

  • Entrevista aProfessor Doutor José Castro LopesMédico neurologista e presidente da Sociedade Portuguesa de AVC (SPAVC)

A esmagadora maioria dos casos de AVC podia ser evitada com a adoção de um estilo de vida mais saudável. A maior parte das vítimas tem mais de 65 anos, mas o ritmo acelerado das sociedades atuais tem gerado outro fenómeno preocupante: as embolias cerebrais, vulgarmente conhecidas por trombose, começam a ocorrer em pessoas cada vez mais jovens. «Ao contrário do que acontecia há décadas, em que o AVC era considerado sobretudo uma forma de morrer», hoje o foco da ciência, «graças a um maior conhecimento em relação ao funcionamento do cérebro», está no tratamento e, sobretudo, na prevenção, a melhor estratégia para travar esta patologia, como nos explica José Castro Lopes, presidente da Sociedade Portuguesa de AVC (SPAVC), uma das entidades nacionais que mais tem contribuído para esta missão.

Grande entrevista a José Castro Lopes

«A elevada percentagem de casos passíveis de prevenção combate-se com uma atitude proativa e isso passa por consultar periodicamente o médico de família», defende José Castro Lopes

O que acontece ao nosso cérebro quando sofremos um AVC?

O cérebro é constituído por milhões de células, os neurónios, interligados entre si e que necessitam, para o seu funcionamento normal, de receber nutrientes, nomeadamente oxigénio e glicose, o que é conseguido através da circulação do sangue que, ao longo de quatro grandes artérias, percorrem o nosso pescoço, pela face anterior e posterior. Uma interrupção, de modo súbito, desta circulação resulta na afetação de um grupo maior ou menor de neurónios que, deixando de funcionar, provocam no nosso corpo deficiência de funcionamento da parte que era mantida normal pelo comando dos neurónios agora afetados. Assim se define o acidente vascular cerebral: instalação súbita de um défice de funcionamento da parte do nosso organismo dependente do comando dos neurónios. O órgão afetado, não totalmente, mas numa parte mais ou menos extensa, é o cérebro.

Os números são realmente assustadores: anualmente, 15 milhões de pessoas, em todo o mundo, sofrem um AVC, das quais seis milhões não sobrevivem. Que fatores pesam mais para que se registem estes números?

O principal risco é o envelhecimento das artérias, que levam o sangue para o cérebro, o que acontece paralelamente com o avançar da idade. Assim, o envelhecimento populacional, que acontece por todo o mundo e, em particular, em Portugal, constitui um risco sobre o qual não podemos atuar. Mas há outros fatores de risco cerebral. Cito como principal a tensão arterial elevada, mas também a diabetes, o tabagismo, o sedentarismo e a fibrilhação auricular, a principal perturbação do normal funcionamento do nosso coração. Este tipo de arritmia origina a formação de trombos nas cavidades cardíacas que, ao serem envolvidos na circulação cerebral, podem ocluir uma artéria, causando a morte neuronal correspondente.

Calcula-se que 90% dos casos de AVC possam ser evitados. O que devem as pessoas fazer para prevenir esta doença?

A elevada percentagem de casos passíveis de prevenção combate-se com uma atitude proativa e isso passa por consultar periodicamente o médico de família que fará os exames clínicos necessários e prescreverá os exames complementares entendidos necessários, para avaliar se a pessoa é portadora de fatores de risco cerebral (ver caixa). É aconselhável tomar particular atenção a partir, sensivelmente, dos 40 anos.

«Dormir de menos, dormir pouco e mal e dormir demais aumenta o risco de AVC», indica José Castro Lopes

De acordo com dados da SPAVC, Portugal é o país da Europa Ocidental onde mais se morre devido ao AVC. Que hábitos dos portugueses explicam esta realidade?

Tem a ver com o envelhecimento da população, mas penso que o problema também está relacionado com a falta de preocupação – resultante de iliteracia – para combater os fatores de risco cerebral. As pessoas pensam que o AVC só acontece aos outros.

Que hábitos podemos ter perdido que, no passado, nos protegiam deste tipo de doença? Por exemplo, a substituição da dieta mediterrânica por alimentos processados tem muita influência nestes números?

Não está devidamente quantificado, mas há evidência de que a “má alimentação” tem marcado influência no sofrimento das artérias em geral e em particular das encarregadas da nutrição cerebral.

Também somos o país da Europa com menos horas de sono diárias. Este mau hábito funciona como uma “bomba-relógio” para o AVC?

Hoje está provado, por vários estudos, que a quantidade e qualidade do sono podem constituir risco cerebral. Dormir de menos (menos de seis horas), dormir pouco e mal, dormir demais (mais de nove horas) aumenta o risco de AVC. Há muitos estudos sobre a duração e a qualidade do sono e a sua relação com os diferentes grupos etários.

«Não é provável compatibilizar a vida agitada com um estilo de vida saudável», refere José Castro Lopes

A maior parte dos casos de AVC acontece em pessoas com mais de 65 anos, mas as estatísticas indicam que o número de casos em pessoas em idade ativa tem vindo a aumentar. É consequência dos tempos acelerados em que vivemos?

A denominada “vida agitada” que se verifica em grande parte da população menos idosa contribui certamente para o aumento da incidência de AVC, por ser um fator de aumento da tensão arterial – principal fator de risco tratável para AVC. A juntar ao pouco tempo para refeições saudáveis, que são substituídas pelo denominado fast food, são razões suficientes, entre outras, para o aumento verificado nesta faixa etária, devendo ser também mencionado o efeito nocivo do uso das drogas ilícitas.

Fumar está associado ao AVC em pessoas mais jovens. Que conselhos deixa aos fumadores?

Medidas legislativas para combater o tabagismo não me parecem o caminho para resultados palpáveis. A literatura recente destrói a referência habitual de que fumar um ou dois cigarros por dia não faz mal. O conselho é não fumar nem um cigarro, se quer ficar livre “custe o que custar” de uma dependência de elevado risco para o aparecimento de AVC.

Como podemos ter uma vida agitada e, ainda assim, manter bons hábitos de saúde e equilíbrio?

Não é provável compatibilizar a vida agitada com um estilo de vida saudável, o único caminho para evitar fatores de risco cerebral.

«O melhor tratamento é, sem dúvida, a prevenção, que significa o controlo eficaz dos fatores de risco cerebral», afirma José Castro Lopes

Muitas pessoas sofrem um acidente isquémico transitório (AIT), com sintomas de duração inferior a 24 horas, mas ignoram este episódio, em vez de procurar ajuda hospitalar. Estes casos devem ser um alerta para uma situação mais grave?

O aparecimento de um acidente isquémico transitório (AIT) – cujos sinais de alerta são os mesmos do AVC, com a diferença de serem transitórios e desaparecerem passadas poucas horas – deve merecer um cuidado igual ao de um AVC constituído. Além de ser impossível prever se se trata realmente de um AIT, mesmo que desapareçam completamente os sintomas nas referidas 24 horas, o risco de ter um AVC é muito elevado, se não for devidamente estudado, despistando fatores de risco cerebral e instituindo o tratamento adequado.

Quais são as consequências físicas e psicológicas de um AVC?

A figura mais típica de um indivíduo que sofreu um AVC é a de quem, tendo meio corpo são, arrasta meio corpo doente, significando défice motor de um dos lados. Mas há défices que podem aparecer de forma isolada ou associados, como por exemplo, o défice da sensibilidade com distribuição sobreponível à alteração motora, défice do campo visual podendo perder a visão completa de uma metade do campo de visão normal, perturbação da linguagem, nomeadamente, não conseguir exprimir-se corretamente, nem perceber o que lhe dizem. Dentro das funções cognitivas, podem também existir perturbações da orientação, da memória, dificuldade em reconhecer objetos familiares. As perturbações emocionais merecem particular atenção pelo sofrimento que causam em si e como dificultadoras da recuperação das funções total ou parcialmente perdidas. A ansiedade e a depressão, pela sua frequência, merecem particular referência.


Que tratamentos se têm revelado mais eficazes?

O melhor tratamento é, sem dúvida, a prevenção, que significa o controlo eficaz dos fatores de risco cerebral. Na última década, assistimos a um progresso acentuado no tratamento do denominado AVC agudo (fase imediata ao aparecimento do AVC) e que consta da desobstrução da artéria que constitui obstáculo à normal chegada de sangue ao cérebro. A fibrinólise [processo cujo objetivo é a dissolução dos coágulos sanguíneos] ou a trombectomia [remoção cirúrgica de um trombo vascular] são outros tratamentos que são tanto mais eficazes quanto mais rapidamente forem aplicados ao doente. As pessoas devem encarar o AVC como uma emergência e se o próprio ou eventual acompanhante notar que está a acontecer deve ligar imediatamente para o 112 que, através da CODU (Central de Orientação de Doentes Urgentes), ativa a Via Verde do AVC que permite a sua rápida condução ao hospital mais próximo, capaz de executar os tratamentos necessários, o que subentende a existência nesse hospital de uma Unidade de AVC.

«A reabilitação é um direito, não é uma esmola», sublinha José Castro Lopes

Que atitude devem as pessoas adotar para reaprenderem a viver, depois de ficarem afetadas pela doença?

Exigir cuidados de reabilitação das funções perdidas, enquanto não conseguirem um estado, tão aproximado quanto possível, da situação em que se encontravam antes de sofrer um AVC. É importante consciencializarem-se de que a reabilitação é um direito, não é uma esmola.

Como presidente da SPAVC, transformou a prevenção da doença numa missão de vida. Qual considera ter sido a sua maior conquista?

Uma dedicação de quase 50 anos ao AVC, com consequente constituição de diversos núcleos de estudo da doença vascular cerebral que vieram culminar na constituição da Sociedade Portuguesa do AVC (SPAVC), da qual fui um dos fundadores e a cuja direção presido desde a sua criação. O reconhecimento de que, atualmente, o grande obstáculo à obtenção de melhores resultados é a fraca colaboração da população. Aqui insiro a inclusão, na principal realização científica da SPAVC, o seu congresso anual, de uma parte final dedicada ao ensino da população geral, facto inédito que não tem obtido a correspondência por parte da sociedade civil, embora divulgada na medida de todas as nossas possibilidades e do seu carácter de acesso livre.

Última revisão: Novembro 2018

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