Com uma carreira de mais de quatro décadas dedicada ao estudo do sono, Teresa Paiva não tem dúvidas: dormir pouco e mal é o maior flagelo da sociedade portuguesa. O retrato que faz é reforçado pelos dados do relatório da Organização Internacional de Controlo de Estupefacientes. Portugal é dos países da União Europeia com um dos maiores níveis de utilização de benzodiazepinas, classe em que se incluem os sedativos para dormir – indicadores também confirmados pelo Infarmed. Além disso, os portugueses são também dos povos que se deitam mais tarde e que são sobrecarregados com mais horas de trabalho. Um cocktail explosivo com consequências nefastas para a saúde que, segundo afirmou Teresa Paiva à Revista Prevenir, é urgente travar.
Grande entrevista: Teresa Paiva, médica neurologista
Quais são os principais motivos para o consumo excessivo de fármacos para dormir?
Primeiro, as pessoas estão convictas de que é melhor tomar um medicamento do que mudar a sua vida. Depois, os portugueses têm hábitos de vida muito disruptivos. Somos dos povos que trabalham mais horas em termos mundiais. Temos dificuldades económicas e acabamos por ter baixa produtividade nesse excesso de horas. Isto aumenta o stresse e faz com que misturemos os horários matutinos com os tardios. Começamos bastante cedo de manhã e acabamos bastante tarde à noite, o que leva à privação do sono, com consequências graves. As pessoas tendem, assim, a sofrer de insónias ou de depressão e, consequentemente, a tomar mais medicação. Paralelamente, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), Portugal tem uma prevalência muito elevada de doenças psiquiátricas. Em algumas regiões, as taxas de suicídio são altíssimas. Todos estes fatores, em conjunto, resultam num “tacho a ferver” que tem tudo para dar asneira.
«Em caso de insónia, levante-se, serene e, quando regressar à cama, resista à tentação de ver as horas, pois só piora a dificuldade em dormir», aconselha Teresa Paiva
Os dados revelam que são as mulheres e os idosos quem mais toma benzodiazepinas. O que explica este facto?
Na maioria dos casos, são as mulheres solitárias ou as domésticas que tomam muitos fármacos para dormir. Assim como os reformados ou as pessoas idosas. Para perceber o que se passa é preciso olhar para o nosso país. Se, por exemplo, analisarmos as taxas de violência doméstica e de homicídios em Portugal, nos primeiros meses do ano, foram mortas duas mulheres por mês. Estes números são a ponta de um icebergue muito maior que envolve mulheres sujeitas a violência. E, ainda assim, achamos que vivemos um país muito pacífico.
Há inúmeras situações que agravam o aumento das insónias e da medicação nas mulheres. É exercida muito mais violência doméstica nas mulheres do que nos homens. Além disso, não existe salário igual para trabalho igual e o sexo feminino tem mais dificuldades na carreira. Sobre as mulheres é sempre imposta uma enorme culpabilidade. Se o marido sai de casa, a culpa é delas, se os filhos se portam mal, a culpa é da mãe. A culpa é sempre da mulher. Atualmente, existe uma outra forma de violência, que é exigir que a mulher seja boa em tudo: boa profissional, boa mãe, boa esteticamente. As mulheres andam sempre em cima de uma bola como um palhaço a fazer equilíbrio no circo.
«Somos dos povos que trabalham mais horas em termos mundiais. Temos dificuldades económicas e acabamos por ter baixa produtividade nesse excesso de horas, o que aumenta o stresse e faz com que misturemos os horários matutinos com os tardios», afirma Teresa Paiva
Existem também motivos biológicos?
As mulheres têm uma biologia diferente da dos homens em termos hormonais. Em muitas doenças, como a insónia, a prevalência é igual nos dois géneros até à puberdade, mas depois começa a ser maior entre as mulheres. Os homens têm um ciclo hormonal relativamente simples: começam com a puberdade a produzir testosterona e é assim até serem velhos. Com as mulheres, é diferente: vivem a puberdade, a menstruação, um ciclo pré e pós-menstrual, as ovulações, gravidez e depois a menopausa. Em termos hormonais, a mulheres são muito mais complexas e há muitas alterações que estão relacionadas com a menstruação, como as dores de cabeça, a insónia, a depressão, a irritabilidade e a síndrome pré-menstrual.
A privação do sono explica os índices elevados de absentismo em Portugal?
A má gestão das horas de trabalho é um problema enorme. Trabalhar horas a mais é a coisa mais estúpida que se pode fazer. Em Portugal, dizemos que estamos abertos das oito às cinco, mas na verdade é das oito às oito. Nos países do Norte da Europa, as pessoas trabalham efetivamente das oito às cinco.
Quais são os problemas de sono mais frequentes entre os portugueses?
A privação do sono e a insónia, que são dois quadros diferentes. No primeiro, a pessoa dorme pouco porque quer. Na segunda, não é capaz de dormir mais. Seguem-se a apneia do sono e a síndrome das pernas inquietas.
«Estamos convencidos que o multitask é bom, mas é péssimo. Pode ser usado uma vez por outra, mas não como regra. Temos de estar concentrados no que estamos a fazer e não noutra tarefa qualquer», afirma Teresa Paiva
Como é se pode adquirir bons hábitos de sono para impedir o recurso a fármacos?
Depende de cada pessoa, mas a primeira regra é que fazendo poucas coisas obtêm-se grandes resultados. Para dormir melhor, não é preciso ir para um mosteiro budista ou católico e isolar-se do mundo no meio do deserto. Temos de saber lidar com a própria vida. No trabalho, as pessoas estão sempre a ser interrompidas. Em Portugal, há ainda esta mania de mudar tudo todos os dias, as leis, os procedimentos e de se querer tudo para ontem. Este tipo de situação só gera ansiedade, baixa produtividade e pouca eficácia. Estamos convencidos que o multitask é bom, mas é péssimo. Pode ser usado uma vez por outra, mas não como regra. Temos de estar concentrados no que estamos a fazer e não noutra tarefa qualquer.
Refere-se a hábitos tão enraizados que quase parecem impossíveis de alterar…
O multitask, as interrupções e o ter de ser tudo para amanhã ou ontem é mudável. Às vezes, chegar a casa uma hora mais cedo, fazer um pouco de exercício físico, andar a pé, apanhar sol de manhã não é assim tão difícil. O sol é de graça e quanto ao andar a pé, só se gasta a sola dos sapatos. São regras simples para quem trabalha muito tempo fechado em escritórios. Temos de simplificar a vida. Não podemos querer ter muita coisa ao mesmo tempo.
Por exemplo, as mães têm uma vida infernal porque trabalham e depois ainda levam os meninos à ginástica, inglês e tudo e mais alguma coisa. Portanto, chegam a casa cansados e aos gritos uns com os outros. De manhã, estão cheios de sono e acordam a gritar: “despacha-te, estamos atrasados!…”. Nas filas de trânsito, perante a mais pequena distração, as pessoas buzinam. Ora, nada disto é uma boa forma de viver. A sociedade portuguesa tem, coletivamente, de pensar em mudar de hábitos para viver mais feliz, com maior eficácia e ser mais rica.
«O sono é a principal garantia da nossa sobrevivência e longevidade»
É urgente a criação de campanhas de sensibilização para a importância do sono?
Sim, o sono é a principal garantia da nossa sobrevivência e longevidade. Temos de dormir. Depois, há a convicção de que as pessoas inteligentes, com sucesso, dormem pouco. E não é verdade. Donald Trump, por exemplo, é um caso paradigmático de alguém que dorme pouco. A inconsistência das suas respostas, a pobreza do discurso e dos gestos é assustadora. Levanta uma mão e depois a outra, o ziguezaguear das coisas, as respostas intempestivas. Os gestos bruscos não são próprios de uma pessoa diferenciada.
Dormir mal é responsável por inúmeros problemas de saúde e doença. Quais são os piores efeitos no nosso organismo?
A insónia, a depressão, o acidente cardiovascular, o risco de AVC, a demência, o cancro, a diabetes tipo 2 e a obesidade.
«Se tem episódios de insónias há cerca de três meses, com frequência de mais de três vezes por semana ou se toma medicação há dois ou três meses sem resultados, é importante consultar um médico especialista», recomenda Teresa Paiva
Os maus hábitos de sono também são particularmente graves entre as crianças e adolescentes. Como podem os pais mudar a tendência para a resistência ao sono por parte dos mais novos?
Os maus hábitos de sono são muito graves entre as crianças e os adolescentes em todo o mundo e, em particular, em Portugal. As crianças e os adolescentes portugueses deitam-se tardíssimo. Estes horários não são praticados no Norte da Europa. O que está a acontecer por cá não é mesmo nada recomendável. A privação de sono é como a cocaína: inicialmente dá prazer, mas depois tem consequências negativas.
Portanto, quem quiser ter uma “boa cabeça” tem de dormir. As pessoas têm de começar a aprender que o sono é também um prazer em si. Os pais têm uma grande influência nesta tendência porque têm horários tardios. Às vezes, jantam às dez da noite. Quando chegam a casa, querem estar com os filhos nessa altura, o que leva as crianças a irem para a cama tardiamente. Estabelecer limites faz parte da educação.
Há alimentos que podem ajudar a dormir?
É muito questionável. Fala-se no leite, mas não há estudos objetivos que garantam que possa ajudar a dormir. Por outro lado, há alimentos que causam menos sono e que devem ser evitados à noite, como o café, o chá. Além disso, comer alimentos ricos em hidratos de carbono aumenta a sonolência durante o dia, mas também não existem estudos conclusivos sobre o tema.
Numa sociedade que privilegia o trabalho, como é que se consegue encontrar mais tempo para dormir?
As pessoas têm de defender os horários de descanso e precisam de perceber que têm um limite. Atualmente, com os vários estímulos ao prazer, acham que podem usar o telemóvel, as redes sociais, os computadores ou ver horas seguidas de televisão até lhes apetecer. Não estabelecem regras, mas é preciso.
Depois, é também importante termos interesses, cultivar o conhecimento. A cultura tem uma influência muito positiva na saúde e noutras áreas da nossa vida. E, fundamentalmente, é bom ser crítico. Ou seja, temos de perceber que nós próprios somos o bem mais precioso. Somos máquinas extraordinárias e a vida é algo extraordinário. Se tiverem ideias mais simples e ancestrais, os portugueses serão certamente mais felizes.
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Quanto tempo devemos dormir?
«Há pessoas mais matutinas, outras são moderadas e há quem goste de se deitar tarde», explica Teresa Paiva, médica neurologista. Ainda assim, há um padrão que devemos tentar seguir: