Um dos grandes mitos da falta de desejo sexual nos casais é que é sempre sinónimo de problemas como falta de amor, desinvestimento na relação, interesse por outra pessoa, falta de comunicação ou dificuldades na intimidade. Mas, apesar de qualquer uma destas questões poder estar na origem de uma diminuição da libido, não é esse o cenário mais frequente. Nas relações estáveis, defende a psicóloga e terapeuta de casais Catarina Lucas, «o fator principal de diminuição do desejo sexual, tanto em homens, como em mulheres, é a diminuição de novidade e a rotina». Este desafio de conciliar a rotina com o erotismo tem sido objeto de investigação da psicoterapeuta Esther Perel – autora do livro Amor e Desejo na Relação Conjugal (Editorial Presença). Para a autora, o grande desafio das relações contemporâneas é compatibilizar desejo e estabilidade ao mesmo tempo e com a mesma pessoa. O título original de um dos seus livros, Mating in Captivity (acasalar em cativeiro), mostra bem esse dilema: o “cativeiro” voluntário das relações estáveis nutre a nossa necessidade de segurança e estabilidade, mas pode arruinar a aventura, o mistério e a excitação. Uma das grandes perguntas, para Esther Perel, passa então a ser: «Podemos desejar aquilo que já temos?» Poder podemos, mas implica quase sempre derrubar um dos outros grandes mitos da sexualidade: a ideia de que o desejo tem de ser espontâneo. «Se no início da relação é assim, com o avançar dos anos, é preciso que haja investimento e predisposição para a sexualidade, já que os estímulos que inicialmente provocavam o desejo podem já não o desencadear», defende Catarina Lucas. «Os estudos indicam que, após os primeiros anos de relacionamento, existe uma diminuição do desejo sexual, em muito associada à falta de novidade no estímulo. Por isso é importante entender que, com o passar dos anos, é necessário ‘provocar’ o desejo e criar espaço para a sexualidade.»
«Homens e mulheres diferem essencialmente na frequência com que esperam ter atividade sexual e não na intensidade do seu interesse»
Afinal, o que é o desejo?
Tradicionalmente, a literatura científica dividia o ciclo da resposta sexual em quatro fases: o desejo – um estado subjetivo responsável pela motivação para a atividade sexual –; a excitação – traduzida na resposta física após estimulação, nomeadamente a lubrificação nas mulheres e a ereção nos homens –; o prazer e, finalmente, a resolução – a fase em que todas as alterações ocorridas durante a primeira e segunda etapa desapareciam. Hoje, esta divisão tradicional deixou de ser consensual. «Há alguma controvérsia acerca do assunto: alguns investigadores atribuem ao desejo uma existência distinta e bem demarcada da excitação e do prazer, mas, atualmente, estudos qualitativos, experimentais e clínicos têm demonstrado não existir base científica e empírica para distinguir o desejo e a excitação subjetiva», explica Patrícia Pascoal, presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica (SPSC). O que parece acontecer, de acordo com a sexóloga, é que a experiência de sentir desejo sexual pode corresponder «a uma resposta de excitação a estímulos subliminares, que são sentidos como motivação (desejo) para se envolver em atividade sexual». Ou seja, desejo e excitação podem ser, na realidade, expressões da mesma entidade.
Falta de desejo sexual: diferenças entre homens e mulheres
Dois estudos realizados por investigadores do Laboratório de Investigação em Sexualidade Humana (SexLab), da Universidade do Porto, em 2014, mostram que homens e mulheres parecem enfrentar problemas diferentes. Um deles centrado no universo masculino, revela que apenas 2,9 por cento aponta a falta de desejo sexual como um problema. Já o outro estudo, focado nas mulheres, coloca a falta de desejo sexual à cabeça das dificuldades descritas, com 25,4 por cento a queixar-se de baixo desejo sexual na maioria das vezes ou sempre. Catarina Lucas confirma que é a mulher que costuma estar na berlinda quanto a queixas relativas à diminuição do desejo sexual, sendo algumas vezes a própria a apontá-lo, outras vezes o parceiro. Mas já começam a aparecer muitos casos de homens com o desejo diminuído, «seja porque está a ocorrer mais, seja porque o homem se está a libertar do estereótipo de ter de estar sempre com vontade», refere a terapeuta, que acredita que há algumas diferenças entre o desejo sexual masculino e o feminino. «O homem responde mais facilmente a estímulos visuais, enquanto as mulheres necessitam mais do estímulo emocional. Frequentemente, elas relatam que é necessário um envolvimento emocional prévio, uma aproximação, seja através de uma conversa ou de um jantar, que vai propiciar a disponibilidade para o sexo», explica Catarina Lucas. Além disso, é mais frequente que a mulher dê prioridade a outros aspetos da vida em detrimento do sexo.
«No que toca ao desejo, a variabilidade é expectável, tanto entre pessoas, como na mesma pessoa, ao longo do tempo»
A frequência das relações sexuais
Para Patrícia Pascoal, a investigação mais recente tem demonstrado que «homens e mulheres diferem essencialmente na frequência com que esperam ter atividade sexual e não na intensidade do seu interesse». De acordo com a sexóloga clínica, «os homens reconhecem que têm mais frequentemente interesse em envolver-se em atividade sexual e tomam iniciativa mais frequentemente». Mas também defende que estes dados são pouco úteis para avaliar o contexto de uma relação heterossexual monogâmica. «Pode haver homens com menos interesse na sexualidade ou que preferem que sejam as suas companheiras a tomar a iniciativa. Não existe propriamente uma resposta “standard” que seja apropriada para todas as pessoas porque a variabilidade individual é imensa.» Ou seja, das tendências ou estatísticas, o que interessa sempre é olhar para o caso concreto.
Falta de desejo sexual: recorrer a ajuda especializada
Há uma premissa em relação à qual há unanimidade entre sexólogos e terapeutas: no que toca ao desejo, a variabilidade é expectável, tanto entre pessoas, como na mesma pessoa, ao longo do tempo. E a diminuição do desejo só é um problema se for sentida como um problema por parte de um ou ambos os membros do casal. «Cada vez se fala menos de falta de desejo sexual. O que tem recebido muito interesse da comunidade científica é a discrepância do interesse sexual entre as pessoas envolvidas numa relação», explica Patrícia Pascoal. «A questão fundamental é: quão perturbadora é a situação para o casal? Muitas pessoas não a valorizam nem sentem que o desinteresse ou a diferença de interesse seja problemática. Aceitam-na como uma característica da relação ou daquele momento da relação», lembra a sexóloga. No entanto, para outras pessoas, essas discrepâncias são problemáticas e causadoras de sofrimento e, nesses casos, a solução passa por procurar ajuda. De forma geral, Catarina Lucas defende que isso deve acontecer sempre que as pessoas sentem que «já não têm recursos para lidar sozinhas com a situação, quando não conseguem comunicar sobre o assunto e quando isto já interfere com a dinâmica do casal e com o seu bem-estar».
«Os terapeutas tentam apurar onde e como se manifesta a queixa, se já apareceu no passado, se há outras dificuldades»
Encontrar as raízes do problema
Nas consultas de Sexologia – dadas por psicólogos ou psiquiatras –, o profissional tem formação em Psicoterapia e em Terapia Sexual e começa sempre por fazer uma avaliação do problema apresentado. «Após verificar se há disfunção sexual e se esta está ou não associada a outros problemas – como depressão ou problemas conjugais –, define-se um melhor protocolo de intervenção, o que, por vezes, pode significar articular com outras especialidades, como Ginecologia e Andrologia», explica Patrícia Pascoal. Para conseguir ajudar o casal ou indivíduo, há que perceber muito concretamente todos os aspetos do problema de falta de desejo sexual. Segundo a sexóloga, tudo tem de ser passado a “pente fino”: «Os terapeutas tentam apurar onde e como se manifesta a queixa, se já apareceu no passado, se há outras dificuldades na vida das pessoas envolvidas, se há problemas relacionais, se há questões de identidade ou de orientação sexual e relacional, se já houve tentativas prévias de resolução do problema, entre outros aspetos importantes, como, por exemplo, de imagem corporal».
Falta de desejo sexual: cada caso é um caso
Aquilo que é solução para alguns casais não é para outros, razão pela qual conselhos genéricos podem dar pistas mas nem sempre ajudam. «Até dizer que as pessoas devem comunicar pode ser uma má ideia: quando há níveis altos de conflito latentes, esperar e deixar cada pessoa resolver internamente as suas dificuldades pode ser a melhor estratégia. A pessoa pode ter dificuldades em usar um vocabulário sexual adequado, pode ter receio de magoar o/a parceiro/a, pode estar com humor deprimido, pode ter dificuldade em lidar com emoções negativas, ter outros problemas na relação que precisa de aflorar de forma adequada, pode ter um temperamento irritável e, quando começa a ter uma discussão, tem dificuldade em gerir as emoções. Nestas situações, primeiro a pessoa precisa de resolver as suas dificuldades de regulação emocional, pelo que aconselhar o casal a “comunicar mais” não vai resolver nada, pelo contrário», exemplifica Patrícia Pascoal.

O desejo ao longo do ciclo menstrual
Para as mulheres em idade reprodutiva, a pesquisa científica aponta para um aumento da libido a meio do ciclo menstrual, o que corresponde à altura da ovulação. Do ponto de vista evolutivo, pode ser justificado como uma forma de aumentar as hipóteses de reprodução. Por outro lado, alguns estudos apontam também para uma possível diminuição do desejo nos dias que antecedem a menstruação, já que muitas mulheres enfrentam sintomas de síndrome pré-menstrual, com alguma irritabilidade ou humor mais deprimido, o que as deixa menos disponíveis.
Falta de desejo sexual: quando procurar ajuda especializada
Os comportamentos abaixo podem indicar que o casal provavelmente chegou a um beco sem saída e o próximo passo é procurar ajuda profissional, revela Catarina Lucas, psicóloga.
- «O casal não se consegue aproximar»;
- «O toque gera desconforto»;
- «Sentem o outro como um estranho»;
- «Sentem desconforto físico ou emocional aquando da relação sexual»;
- «Raramente existe desejo»;
- «Necessidades e preferências são diferentes»;
- «Não conseguem conversar sobre a vida sexual e aquilo que a perturba»;
- «O envolvimento sexual ou a sua possível ocorrência provoca ansiedade»;
- «Existem crenças e medos associados».
Falta de desejo sexual? Experimente estes exercícios
Dependendo dos problemas identificados em consulta, estes são alguns dos “trabalhos de casa” que a psicóloga Catarina Lucas indica aos casais com falta de desejo sexual:
- Criar espaço e tempo para a intimidade
«É diferente de criar espaço e tempo para a sexualidade. Pode incluir ir jantar fora, passear, conversar ou ver um filme. A ideia é potenciar a ligação emocional, já que esta promove o desejo sexual. Quanto mais distante emocionalmente o casal estiver, mais difícil é o envolvimento sexual.» - Relembrar o início da relação
«Por vezes, um exercício que pedimos é que, através da expressão corporal, as pessoas representem como eram enquanto casal no início da relação. Este exercício obriga o casal a recordar e, no fundo, a aproximar-se fisicamente, a tocar no outro, a sentir o toque do outro.» - Restrição da penetração
«Podendo parecer um contrassenso, mas a sexualidade focada na penetração pode ser “restringida”, sendo por outro lado “autorizado” que o casal explore o corpo e outras formas de sexualidade. Como “o proibido é o mais desejado” e as pessoas se sentem atraídas pela transgressão, através da restrição, acaba por se fomentar o desejo.»