O seu filho não para de jogar Fortnite?

O seu filho não para de jogar Fortnite?

Na dose certa, os jogos eletrónicos podem ajudar a desenvolver o raciocínio e competências sociais. Mas, se o seu filho fica muito irritado quando impõe limitações ao Fortnite, não duvide: está na altura de atuar.

  • PorFátima Lopes CardosoJornalista

  • ColaboraçãoProfa. Doutora Ana GomesPsicóloga clínica na área infantil e da adolescência, investigadora do Centro de Investigação em Psicologia (CIP) da UAL
  • Gaspar MachadoGamer

Cada vez mais sofisticados, estimulantes e, ainda por cima, gratuitos, os jogos first e third personal shooter, como o famoso Fortnite ou o mais recente Apex Legends, prendem milhões de jovens ao computador. «Adotam o conceito de multiplayer, ou seja, os jogadores estão em rede para lutar contra inimigos virtuais, numa lógica de sobrevivência e já não na perspetiva de atirar para matar», explica Gaspar Machado, gamer, à Revista Prevenir. Embora sejam verdadeiros fenómenos de sucesso e não existam ainda estudos sobre as consequências do uso excessivo, os especialistas têm detetado indícios de que a utilização excessiva deste tipo de jogos pode viciar, com sérias consequências para o bem-estar e equilíbrio dos mais novos. E advertem que a sua utilização deve ser interdita a crianças com idades inferiores a 12 anos. «Existe uma violência subtil, que não recorre a sangue ou cenários explícitos de dor», alerta Ana Gomes, psicóloga da infância e do adolescente.

Em 2013, a Associação Psiquiátrica Americana incluiu no guia de doenças psíquicas a Internet gaming disorder ou perturbação de jogador de Internet

Exercitar o facilitismo

Ao contrário do que aconteceu em jogos de gerações anteriores, a terapeuta lembra que «a violência já não é ponto central da preocupação a este nível, até porque os estudos são contraditórios. Apesar de existirem pesquisas que associaram os videojogos a comportamentos agressivos, há estudos mais recentes que não encontraram relação entre jogar e comportamentos violentos. No entanto, identificaram problemas e outras preocupações, com efeitos negativos a vários níveis». A mais grave consequência detetada nos jovens gamers adictos ao Fortnite e outros jogos é o facto de se relacionarem com o mundo numa lógica imediatista. «Tudo tem de ser atingido com muita rapidez. Deixam de conseguir funcionar com prazer a médio e a longo prazo. É uma preocupação, porque, se desenvolverem neste registo de imediatismo, acreditando que tudo se resolve num clique, acabam por nunca estar satisfeitos. Pensam: “com um clique adquiro, faço e posso”. Há estudos em desenvolvimento que indiciam que estes jovens crescem sem saber funcionar num registo ajustado de resposta a médio e a longo prazo. Esta maneira de estar vai sendo transposta para outros níveis da vida, como na escola e em casa. Portanto, a lógica é facilitista.»

Amizades virtuais vs. reais

A ideia de que os jogos, como o Fortnite, só são funcionais em equipa e que precisam de uma rede de amigos ou conhecidos tem, segundo Ana Gomes, «criado a ilusão junto dos pais que, enquanto jogam, mantêm os laços de amizade que trazem da escola e do seu dia a dia». A especialista lembra que «são pseudorrelações que apenas contribuem para que crianças e jovens tenham dificuldade em estar nas relações cara a cara». Como argumenta, «apesar de estarem a jogar em rede e falarem uns com os outros, é uma realidade virtual, pois o espaço continua a ser individual. Parece que estão acompanhados, mas, na verdade, encontram-se sozinhos. O que os une é apenas um jogo, com práticas bem determinadas. Estes miúdos acabam por limitar a vida a um registo em que só sabem estar em grupo a fazer qualquer coisa que está predefinida. Não conseguem estar com os outros num sentido mais intimista, espontâneo, como seja conversar, descobrir o outro nas suas mais diferentes facetas, brincar e ser natural com a outra pessoa. Para eles, tudo funciona de acordo com aquela estrutura e é unicamente isso que os une».

«Deixar os mais novos em contacto com estes dispositivos mais do que duas horas diárias é claramente excessivo»

Fortnite: sinais de alerta

Sem limitarem unicamente as advertências aos videojogos, mas ao uso de todos os aparelhos eletrónicos, os especialistas consideram que deixar os mais novos em contacto com estes dispositivos mais do que duas horas diárias é excessivo. «Há dias, uma criança disse-me, em consultório, que chegava a estar 12 horas a jogar, sem qualquer restrição. É completamente insano», revela. Ana Gomes sublinha que há sinais a que os pais devem estar alerta, revelando que «o uso começa a ser preocupante quando os jovens já não são capazes de se sentirem bem a fazer outra coisa a não ser jogar e só se sentem felizes dessa forma. Começam a reagir com maus modos com os pais perante planos para fazer qualquer coisa fora de casa. Um dos principais sinais de alerta surge quando os miúdos ficam frustrados e muito irritados por serem impedidos de jogar Fortnite ou outro. Geralmente são reações descontextualizadas, com acessos de raiva e de irritabilidade só porque lhes foi bloqueado o acesso ao jogo. Como pensam no imediato, não conseguem vislumbrar que podem jogar mais amanhã».

Fortnite: como impor regras

Impor limites de utilização é uma medida imprescindível para que os jovens mantenham uma relação saudável com os ecrãs. O uso dos equipamentos eletrónicos, como os videojogos, tem de ser gerido pelos progenitores: «Os pais têm de impor regras e segui-las à risca. Se dizem que podem jogar meia hora por dia, é para cumprir. Quando os filhos não obedecem, é necessário dizer “acabou” e até adotar medidas mais excessivas, como desligar o computador quando não obedecem. Tem de existir uma regra que não é questionável ou discutível». Ana Gomes lembra que «jogos como o Fortnite têm uma lógica de jogo infinita, por isso o argumento de que estão quase a ganhar ou a terminar nunca pode ser desculpa para não desligar o computador quando os pais mandam».

«Os utilizadores desenvolvem a rapidez de raciocínio e uma boa coordenação viso-motora entre o que pensam e a sua reação»

Benefícios dos videojogos

Mas nem tudo é negativo nos videojogos. A especialista afirma que foram identificados benefícios na sua utilização, desde que se consiga encontrar o equilíbrio. «Quando usados com moderação e a escolha é adequada à idade, podem estimular o desenvolvimento. Jogos que implicam construção, como o Minecraft, estimulam a criatividade. O facto de se relacionarem ou estarem em rede com pessoas do mundo inteiro dá-lhes uma plasticidade e fluência para línguas, nomeadamente para falar inglês, o que pode ser útil no futuro. Os utilizadores desenvolvem a rapidez de raciocínio e uma boa coordenação viso-motora entre o que pensam e a sua reação», aponta. Ana Gomes defende que proibir a sua utilização não é de todo correto. «Os pais têm de encontrar o equilíbrio. Adotar uma posição extremista de proibir os filhos de tocar em qualquer tipo de dispositivo eletrónico não é a atitude correta, pois as crianças sentem-se desfasadas da realidade. Tem de existir conta, peso e medida.»

Procurar ajuda

Quando os pais percebam que estão a ter dificuldades e que a criança não assume as regras, reagindo com agressividade, a terapeuta aconselha a recorrer a ajuda: «É importante procurar apoio de um psicólogo. Às vezes os pais perdem a noção do que é correto, o que devem fazer, dizer e de saber até que ponto têm razão. Existem alguns jovens, sobretudo os adolescentes, que apresentam argumentos muito ricos, dizendo que passam demasiado tempo na escola, nas atividades, que têm boas notas, comparando-se aos outros e deixando os pais confusos.» Da sua prática clínica, Ana Gomes constata que «os pais de hoje parecem sentir-se culpados porque passam pouco tempo com os filhos, têm receio de entrar em conflito e de impor limites porque custa e cansa», mas lembra que «os pais devem ter sempre a última palavra».


Os jogos de sobrevivência mais populares

Fortnite, Apex Legends e PUBG são os jogos de Battle Royale do momento. Gaspar Machado, gamer, explica em que consistem.

«É um estilo de jogo de sobrevivência. No início, as equipas são lançadas num nível em que o objetivo passa por se manterem vivas o máximo de tempo possível. Os últimos sobreviventes de uma determinada equipa ganham o jogo. Todos estes jogos são relativamente violentos, mas, face ao ar “abonecado” do Fortnite e ao facto de não haver efetivamente muita violência nas batalhas – não existe sangue, por exemplo –, trata-se de um jogo preferido pelas camadas mais jovens. Devido ao sucesso, têm sido lançados cada vez mais jogos deste género. O Apex Legends surgiu recentemente e tem destronado o Fortnite em números a um ritmo alucinante. Só nos primeiros três dias de lançamento, já tinha atingido dez milhões de jogadores. Trata-se de um jogo Battle Royale, mas também com classes, ou seja, cada personagem que o jogador escolhe tem um superpoder característico.»


4 estratégias que os pais devem aplicar

  1. Meios Tenha atenção ao acesso à Internet e não apenas ao uso dos jogos. «Embora muitos pais não tenham noção, há sites que, subtilmente, podem instigar a agressividade e outros comportamentos negativos.»
  2. Horários É fundamental impor horários de utilização, definindo o dia e as horas que podem jogar. «Sempre com “balizas” bem definidas e nunca antes de ir para a cama. A vida é feita de balizas. Só impondo regras é que os mais novos podem aprender a aceitar as contrariedades.»
  3. Regras Quando a criança ou jovem tem tendência para o excesso, deve definir uma regra inviolável, como jogar apenas ao fim de semana, em determinado horário.
  4. Alternativas Convide os seus filhos a desenvolver atividades ao ar livre. «As crianças e os jovens tem de sentir as vantagens e o prazer de dedicarem tempo livre a essas atividades.»

Fonte: Prof. Doutora Ana Gomes, psicóloga clínica na área infantil e da adolescência


Fortnite: a visão de um gamer

Gaspar Machado, 31 anos, é conhecido no universo dos videojogos por Hypno. Começou a jogar aos 13 anos e, apesar de ter sentido necessidade de fazer uma pausa na sua carreira, foi um dos melhores jogadores de First Person Shooter, especificamente de Unreal Tournament. Para combater os estigmas negativos a que os gamers surgem associados, em 2010 organizou na universidade a primeira conferência de desportos eletrónicos a nível nacional, integrado no projeto final de curso. Da sua experiência garante: «Os jogadores de e-sports que conheço são competitivos e atletas de alta competição. O estereotipo do nerd que joga videojogos e se isola tende a desaparecer. Diria mesmo que os e-sports melhoraram a minha capacidade cognitiva e social.»

Última revisão: Maio 2019

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