Nuno Lobo Antunes: «Somos melhores pais do que nunca»

Nuno Lobo Antunes: «Somos melhores pais do que nunca»

«Temos muito mais tempo para os filhos e damos-lhes muito mais atenção», argumenta Nuno Lobo Antunes, médico neuropediatra, que ao longo de décadas tem tratado com sucesso crianças e jovens com perturbações de desenvolvimento e comportamento.

  • PorSofia TeixeiraJornalista
  • FotografiaArtur

  • Entrevista a Dr. Nuno Lobo AntunesMédico neuropediatra, diretor clínico do PIN – Progresso Infantil

São 648 páginas com muitos problemas, mas também com muitas soluções. O neuropediatra Nuno Lobo Antunes e sua equipa do PIN — Progresso Infantil escreveram Sentidos (Lua de Papel), um livro que não é apenas sobre perturbações do desenvolvimento e comportamento: é sobre crianças de carne e osso e sobre famílias à procura de respostas.

Grande entrevista a Nuno Lobo Antunes, médico neuropediatra

Nuno Lobo Antunes: «Somos melhores pais do que nunca»

É médico há 40 anos e dedicou grande parte deles às perturbações do desenvolvimento e comportamento em crianças e adolescentes. Quais são as grandes diferenças na abordagem médica a estas perturbações hoje, por comparação com o início da sua carreira?

Desde logo, as duas patologias mais frequentes hoje – a perturbação da hiperatividade e défice de atenção (PHDA) e as perturbações do espectro do autismo (PEA), nomeadamente as mais ligeiras, como a Síndroma de Asperger – não eram sequer reconhecidas. É preciso perceber que há três ou quatro décadas morria-se de sarampo e de meningite meningocócica. Nesta área só havia preocupação com os casos mais graves, como a deficiência mental severa. A atenção às questões do desenvolvimento e comportamento é recente.

Além de recente, está ainda circunscrita apenas a uma parte do mundo?

De certa forma. Há cerca de um ano, estive a fazer umas conferências sobre estes temas em Moçambique. A primeira pergunta de um dos jornalistas que me entrevistou foi: “Qual é o interesse daquilo que vem falar num pais em que há pessoas a morrer de fome?”. E eu percebi muito bem o que ele queria dizer. É preciso resolver primeiro as questões mais básicas de saúde para depois nos podermos preocupar com estas perturbações.

«As pessoas ainda tremem ao ouvir a palavra “autismo” e ainda escondem o termo “hiperatividade”», observa Nuno Lobo Antunes, médico neuropediatra

Estas crianças ainda enfrentam um grande estigma social?

O estigma está a diminuir, mas ainda permanece. As pessoas ainda tremem ao ouvir a palavra “autismo” e ainda escondem o termo “hiperatividade”. Creio que é um caminho que se está a fazer, mas ainda estamos longe de olhar para este tipo de problemas como quem olha para alguém que tem diabetes. As perturbações mentais ainda carregam um estigma que muitos associam quase que a uma deformação do carater.

Um dos problemas que mais tem aumentado são as perturbações do sono. O que é que mais interfere com a chamada higiene do sono?

Um dos problemas principais, sobretudo com os adolescentes, é a utilização de ecrãs à noite. É talvez uma das causas mais frequentes de privação do sono. E é um problema de difícil solução, porque a carga horária que tem, entre escola e trabalhos de casa, acaba por não lhe deixar muito tempo para o lazer, a não ser depois do jantar. Os pais reconhecem o problema, mas não é fácil geri-lo porque também não querem retirar-lhes esses momentos de lazer.

Vê com preocupação os atuais tempos de uso de Internet?

Todas as gerações têm sempre muito medo dos brinquedos da geração seguinte. Dantes desconfiava-se dos romances literários e do impacto que a sua leitura podia ter sobre as jovens. Por isso sou cauteloso, acho que nesse campo, não há substituto ao bom senso. Até porque quando a Internet se torna um problema, geralmente, é porque a criança tem um problema prévio ao qual a Internet veio dar resposta. Logo, é muito importante reconhecer o problema de base que, por vezes, está relacionado com dificuldades nas interações sociais.

Ainda em relação às perturbações de sono, refere no livro que são mais frequentes em crianças com perturbações do desenvolvimento. Quais são as que mais frequentemente têm um impacto no sono?

As perturbações de espectro do autismo (PEA), claramente. Muitas crianças com PEA têm alterações do sono muito precoces, logo em bebés.

Pode ser um primeiro sintoma?

Pode. São, por vezes, bebés muito irritáveis, difíceis de consolar, com interrupções frequentes do sono. Mas também os miúdos com PHDA costumam ser afetados por um sono pouco tranquilo e acredita-se que isso acaba por criar um ciclo vicioso: a privação do sono não ajuda em nada à concentração.

Nuno Lobo Antunes: «Somos melhores pais do que nunca»

«Qualquer perturbação do desenvolvimento é geradora de tensões familiares muito marcadas. É preciso muita maturidade e muito amor para as gerir», afirma Nuno Lobo Antunes, médico neuropediatra

Nem à concentração dos filhos, nem à dos pais. Que impacto é que este tipo de alterações têm na família?

Qualquer perturbação do desenvolvimento é geradora de tensões familiares muito marcadas. É preciso muita maturidade e muito amor para as gerir. Aliás, o aumento de divórcios entre casais que têm crianças com autismo ou hiperatividade é três a cinco vezes superior à média da população em geral.

Como é que viu a proposta de alteração legislativa que pretendia impedir a prescrição de metilfenidato a crianças com menos de 6 anos?

A prescrição de medicamentos é uma decisão médica, tomada depois de avaliar o risco da medicação e o risco da perturbação, se for entendido que o risco da medicação, por comparação, é menor. Não cabe à Assembleia da República decidir sobre esta matéria e o que para mim é perturbador nesta proposta de lei é o pressuposto de que o Estado tem de defender as crianças dos seus médicos. É profundamente insultuoso. Se me perguntar: “É frequente medicar crianças abaixo dos 6 anos?” Não, é raríssimo. Se me perguntar “Já o fez?” Sim, já o fiz. E fi-lo por considerar que, naquela circunstância particular, era a solução menos má para a criança.

Há ainda uma grande incredulidade de uma parte significativa da população na possibilidade de uma criança ter depressão. Como é que se explica uma depressão numa criança?

A depressão surge sempre quando nós não temos boas escolhas perante um problema: quando não há verdadeiramente saída e nem a agressão nem a fuga são solução. E isso é um aspeto da condição humana que não é exclusivo da idade adulta. Apesar disso, não é um diagnóstico muito frequente e não tenho a certeza que nós já saibamos identificar com facilidade a depressão em crianças, sobretudo porque as formas de apresentação são diferentes das do adulto. Às vezes, nas crianças, pelas suas capacidades de comunicação menos desenvolvidas, a depressão está mascarada e passa despercebida ou é confundida com outros diagnósticos.

Ainda há mais dúvidas do que certezas em relação a muitos aspetos da saúde mental?

Um dos problemas em relação à saúde mental é que não existem marcadores biológicos. Eu posso estar um dia inteiro a argumentar que uma criança tem autismo, do outro lado, ter alguém a afirmar igual tempo que não tem e nenhum de nós tem uma prova. As interpretações e os próprios nomes dos diagnósticos variam muito ao longo dos anos, o que torna difícil fazer estudos de longo prazo: meia dúzia de anos depois de iniciado o estudo, a terminologia para designar aquela perturbação já é outra.

Nuno Lobo Antunes: «Somos melhores pais do que nunca»

«A humildade é essencial. Às vezes, existe uma soberba excessiva por parte de médicos e técnicos ao falar sobre estes problemas», conta Nuno Lobo Antunes, médico neuropediatra

Trabalha-se sempre com uma certa dose de incerteza?

Temos de ser muito humildes e ter noção que há muito que não sabemos sobre estas questões. Este livro, por exemplo, representa aquilo que nós pensamos em 2018, mas tenho consciência plena que, em 2025, poderemos estar a escrever coisas razoavelmente diferentes. A humildade é essencial. Às vezes, existe uma soberba excessiva por parte de médicos e técnicos ao falar sobre estes problemas.

Isso implica que, por vezes, não haja uma resposta ou solução mais definitiva para dar a crianças e pais?

Claro que temos números e estatísticas. Mas o que os pais querem saber não são generalidades, é qual vai ser o trajeto da sua criança em particular. E isso é raro conseguirmos prever com segurança. O que podemos dizer é que faremos o caminho juntos, refletindo e apoiando. Já não é pouco.

«As crianças, no geral, vivem muito melhor hoje do que viviam há décadas, os progressos são óbvios e evidentes a todos os níveis», afirma Nuno Lobo Antunes, médico neuropediatra

No seu livro, diz que se estima que 20 por cento das crianças sofre em algum momento com perturbações de ansiedade. A vida dos adultos hoje tem aí alguma responsabilidade?

As crianças, no geral, vivem muito melhor hoje do que viviam há décadas, os progressos são óbvios e evidentes a todos os níveis. Dito isso, é certo que, para uma parte da população, a democratização do ensino e das oportunidades trouxe mais competição. E, por outro lado, a sociedade está sem dúvida mais violenta e insegura. Dantes partia-se do princípio da bondade das pessoas e isso, no geral, era verdade. E as mudanças também eram mais lentas, hoje são rápidas e isso pode ser gerador de muita ansiedade.


Diz-se com frequência que a vida acelerada hoje nos deixa menos tempo para os filhos. Concorda?

Não concordo. Temos muito mais tempo para os filhos e damos-lhes muito mais atenção. O facto de termos muito mais consciência, por um lado, dos direitos e da dignidade das crianças e, por outro, do impacto que a infância e adolescência tem na sua vida futura é que nos torna mais exigentes. E é também por isso que somos hoje melhores pais do que nunca.

Contou, há muitos anos, o caso de uma mãe com imensos problemas que, apesar disso, era uma mulher muito bem resolvida e muito otimista. Perguntou-lhe “como é que consegue?”, ela respondeu-lhe “consigo porque tive uma infância feliz”. Ter uma infância feliz é a base de quase tudo?

É seguramente um porto de abrigo. E isso dá-nos uma enorme responsabilidade. Muitos pais e mães dizem-me “Eu só quero que o meu filho seja feliz”. A verdade é que não controlamos a felicidade dos nossos filhos, sobretudo com a entrada na adolescência. Pode haver uma palavra que magoa, um episodio de bullying, um desgosto amoroso e tudo isso interfere no bem-estar do jovem. Mas acredito que podemos dar-lhes uma infância feliz, na medida do possível.

E qual é a receita para fazer uma criança feliz?

A base de tudo é o amor incondicional.

Última revisão: Fevereiro 2019

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