Marta Crawford: «A maior parte das mulheres não tem prazer através da penetração»

Marta Crawford: «A maior parte das mulheres não tem prazer através da penetração»

Portugal é o único país do mundo com um Dia Nacional da Saúde Sexual. Mas o tema do prazer sexual feminino ainda parece ser tabu. Marta Crawford, criadora do Museu Pedagógico do Sexo — Musex — e da exposição Amor Veneris, uma viagem ao prazer sexual feminino, faz-nos refletir sobre o caminho que ainda há a percorrer. Onde nada é obrigatório. Nem tabu.

  • PorBárbara BettencourtJornalista
  • Fotografia©JENNIFFER LIMA PAIS/GERADOR

  • Entrevista aMarta CrawfordPsicoterapeuta, Terapeuta Sexual e Familiar

O prazer sexual feminino é um tema recorrente nas consultas de Marta Crawford. A terapeuta sexual defende que é urgente estudar e olhar mais para este tema, inclusive a nível científico. «Ainda sabemos muito pouco sobre o clitóris e as diferentes formas de prazer feminino, ao contrário do que acontece com a sexualidade masculina», diz. A exposição Amor Veneris – Viagem ao Prazer Sexual Feminino, dá visibilidade ao tema. É a primeira iniciativa do Museu Pedagógico do Sexo – Musex, inaugurado em junho de 2022, no Palácio Anjos, e também uma iniciativa com a curadoria de Marta Crawford e Fabrícia Valente. Combater tabus, informar e refletir usando um olhar artístico é o objetivo do museu. «Quis um espaço que se diferenciasse dos modelos da Europa, cheios de artefactos e chicotes, e onde, além da vertente educativa e científica aliada à arte contemporânea, se pudesse trabalhar com a comunidade».

Grande entrevista a Marta Crawford, terapeuta sexual e familiar

Marta Crawford, terapeuta sexual e familiar

«A estimulação do clitóris tem de existir para que o prazer sexual culmine, e as mulheres têm de assumir isso sem sentir que estão a dar muito trabalho»

Por que ainda sabemos tão pouco sobre prazer feminino?

A anatomia completa do clitóris só foi concluída em 2005 por Helen O’Connell, graças aos seus trabalhos de dissecação de cadáveres. Percebemos que é muito maior do que se pensava, com cerca de oito mil terminações nervosas, um órgão sublime cuja única função é o prazer sexual. O desconhecimento do clitóris e do prazer feminino reflete-se nos manuais e teorias científicas, pelo que é preciso retificar estas lacunas. Freud não ajudou ao dizer que as mulheres que tinham prazer clitoriano eram imaturas. E ainda hoje se pensa que é através da penetração que o sexo é completo. Diz-se muito “fomos até ao fim”, todas estas nomenclaturas refletem esta ideia, quando sabemos que a maior parte das mulheres não tem prazer através da penetração. A estimulação do clitóris tem de existir para que o prazer sexual culmine, e as mulheres têm de assumir isso sem sentir que estão a dar muito trabalho. Têm de olhar para o seu corpo, perceber a sua anatomia, que não vale a pena insistir na vagina (apesar de o clitóris estar adjacente e serem estruturas interligadas) e que a estimulação direta do clitóris é muito importante para o prazer sexual.

O que a exposição Amor Veneris nos ensina sobre prazer feminino?

Simbolicamente, quando se entra na exposição, entramos no corpo feminino e começamos por ter de pedir consentimento. Quem entra pela porta do não consentimento tem acesso a uma exposição sobre a violência sexual sobre as mulheres. Quem entra pelo consentimento viaja por três áreas: o cérebro, a pele e o clitóris. O cérebro é o principal órgão sexual, com diversas experiências sensoriais. É frequente que a representação do prazer sexual comece pelo corpo, nomeadamente pela vagina, mas propomos começar por despertar os sentidos – olfato, visão, audição, tato –, num labirinto cerebral associado ao desejo. Há obras que não estão imediatamente visíveis e que é preciso descobrir, precisamente como acontece com o desejo sexual feminino. Depois entramos na pele, o maior órgão sexual. As obras de arte convidam a explorar corpos femininos não estereotipados, um convite a ver o corpo além dos genitais e das mamas, ampliando a visão do corpo feminino quando pensamos em sexualidade. E só por fim chegamos ao clitóris, representado por um corredor vermelho, onde se mantém o apelo à observação e se caminha rumo à excitação, entendendo que esta pode ser mais importante do que o orgasmo, pois é o que nos faz querer voltar lá. É possível ter um orgasmo de forma mecânica, sem ter esta associação ao prazer, mas não será tão gratificante. Há também um convite a ter tempo, parar, esperar, desfrutar, não correr rumo ao orgasmo.

«Os homens têm a sexualidade mais centrada nos genitais e a resposta sexual feminina é diferente. A mulher precisa mais do tato, da ideia de um corpo inteiro que é preciso chamar a jogo», afirma Marta Crawford

De que formas o prazer feminino pode ser potenciado?

Antes de mais devemos refletir sobre o consentimento. A falta dele condiciona toda a experiência, pois configura um cenário de abuso que pode ocorrer no quadro de relações conjugais em que se ama o outro, mas há um que insiste e o outro que consente pela coação, porque não quer ficar mal, porque já disse que não no dia anterior, numa dinâmica em que acaba por ceder. O consentimento não é cedência, é uma vontade expressa e entusiasmada, que deve ocorrer antes da experiência em si e que pode ser dado e retirado a qualquer momento. Muitas mulheres acham que, se o homem não for até ao fim, vai acontecer-lhe algo e cedem, num papel um pouco maternal de “dar um jeito”, mas no sexo não se pode dar um jeito. Ou se quer, ou não se quer. O “nim” não pode acontecer. O “não” representa a nossa capacidade de autodeterminação. Devemos ter a possibilidade de dizer “hoje não me apetece” e isso não ser um problema. Se o “não” for aceite de forma tranquila, provavelmente amanhã transforma-se num “sim” porque não houve pressão.

«Quando os casais descobrem os benefícios de uma excitação não apressada, com tempo para a tensão sexual crescente, intensificando todos os sentidos, nunca mais querem deixar de tocar, sem pressa de chegar às posições mais óbvias», conta Marta Crawford

As diferenças na forma de ter prazer podem ser um obstáculo?

Os homens têm a sexualidade mais centrada nos genitais e a resposta sexual feminina é diferente. A mulher precisa mais do tato, da ideia de um corpo inteiro que é preciso chamar a jogo. Quando ambos centram tudo nos genitais ou nas mamas, perde-se o potencial de todo o corpo, que promove mais proximidade, cumplicidade, intimidade, e que torna a excitação muito mais densa, mais estimulante. Se não se criar esta dimensão, é possível uma relação com penetração, mas não é tão satisfatória para a mulher. Para uma relação sexual com prazer pleno, a descoberta do corpo inteiro é fundamental, é um novo guião da sexualidade. Muitas vezes, numa terapia sexual, os homens descobrem um potencial do corpo que não imaginavam. Quando os casais descobrem os benefícios de uma excitação não apressada, com tempo para a tensão sexual crescente, intensificando todos os sentidos, nunca mais querem deixar de tocar, sem pressa de chegar às posições mais óbvias.

A comunicação é essencial?

Quando a excitação passa do corpo para os genitais ou as mamas, a capacidade de verbalizar o que se gosta e não gosta faz diferença. Dizer mais à esquerda ou à direita, com mais ou menos pressão, não faças assim ou assim já chega. Porque, muitas vezes, o outro pode achar que está a fazer algo bem, porque para ele ou ela funciona. Já o próprio pode não se sentir assim.

Como se cultiva o desejo?

Cultivando a fantasia e o imaginário sexual. Esse esforço de pensar sobre a sexualidade, sobre a última experiência que foi prazerosa, é algo que os homens fazem muito, acabando por pensar muito mais em sexo no dia a dia do que as mulheres. Quando estas chegam à cama ainda não pensaram sobre sexualidade o dia todo, o que significa que estão menos disponíveis do que os homens, que já pensaram nisso e podem focar-se mais facilmente. Por isso, o tempo para massagens, festas e carícias é extremamente importante para aceder a esse imaginário mais sexual, mais íntimo.

«À medida que as relações vão evoluindo só se pensa é na lista do supermercado, o que é pouco sexy. É preciso criar novos ritmos para a espontaneidade reaparecer e tudo saber muito melhor. Pensar nisto é o primeiro passo», explica Marta Crawford

Essa “disponibilidade” é mais difícil em contextos de stresse?

Temos de encontrar no espaço do dia a dia a disponibilidade para o sexo e para outras coisas, como ir passear ou jantar fora, não estar sempre em modo função ou família. Se acorda e vai trabalhar, tem horários complexos e está sempre em modo funcional, há pouco espaço para este imaginário sexual ou o sexo acaba em modo função: “temos cinco minutos, vamos a isso”. Não há tempo, já passou para a penetração, não houve excitação ou prazer, logo, não podemos esperar milagres. É esse tempo e imaginário que temos de tentar conquistar e encontrar.

A espontaneidade sexual é um mito?

As pessoas cada vez têm menos tempo e às vezes os guiões sexuais são muito iguais, é tudo rápido e mais orientado para o que é suposto acontecer, em vez de orientado para uma dinâmica de criar “vontade”. Essa vontade é o mais importante, pensar nisso, estar disponível, tal como acontece no início das relações quando é tudo muito poético, muito ansioso, só se pensa, só se quer. À medida que as relações vão evoluindo só se pensa é na lista do supermercado, o que é pouco sexy. É preciso criar novos ritmos para a espontaneidade reaparecer e tudo saber muito melhor. Pensar nisto é o primeiro passo.


Quer ter mais prazer? Pense em sexo

«Se tem pouco imaginário sexual, tente ler livros e ver filmes que promovam esta apetência e não vá atrás de mitos, como orgasmos ao mesmo tempo ou penetração como essencial para ir até ao fim», aconselha Marta Crawford.

Marta Crawford: como encontrar a (sua) felicidade sexual

«O caminho passa por aprofundar o autoconhecimento sexual: saber como gosta de ter prazer, perceber que, mesmo quando ama muito, não tem de se gostar do mesmo, não fazer sexo por culpa ou pressão, mas sim porque quer e deseja, e pensar mais sobre sexo. Ir à descoberta, com tempo, e sobretudo criar um espaço de conforto, bem-estar, carinho, diálogo… Tudo isto torna a experiência sexual mais gratificante», afirma Marta Crawford.


Exposição amor veneris

É um convite para uma viagem ao prazer sexual feminino e está patente até 30 de dezembro. É para todas as idades, «incluindo crianças e jovens, cada um entendendo na sua capacidade as mensagens que as obras suscitam de forma pedagógica», salienta Marta Crawford.

  • Musex: Palácio Anjos – Centro de Arte Contemporânea, Algés, Oeiras
    musex.pt
  • Horário: Terça-feira, quarta, quinta-feira e domingo, das 11h às 19h; sexta-feira, sábados e feriados, das 11h às 20h.
  • Bilhetes: Musex e online em ticketline.sapo.pt
  • Preço: €5

Consultas de sexologia no museu
Em simultâneo com a exposição Amor Veneris – Viagem ao Prazer Sexual Feminino, no Musex serão realizados debates e oficinas para a família e, em parceria com a Associação para o Planeamento da Família, serão disponibilizadas, até 30 de dezembro, consultas de Sexologia e Aconselhamento (no valor de €45), individuais ou para o casal.

Última revisão: Outubro 2022

Mais sobre:

Grande Entrevista

artigos recomendados

Previous Next
Close
Test Caption
Test Description goes like this