Atingir a felicidade é o grande objetivo do ser humano, mas nem todos conseguem alcançá-la. Em entrevista, Fernando Lima Magalhães, psicólogo e psicoterapeuta, ajuda a perceber porquê, refletindo sobre um tema que assume como «subjetivo» e sem uma «receita universal». Para isso, explica como se ultrapassam pensamentos tóxicos e reforça a autoestima, partilhando estratégias que potenciam hábitos otimistas.
Grande entrevista a Fernando Lima Magalhães: como ser feliz?
Como atingir a felicidade e o que é ser feliz? Em alguma fase da vida somos confrontados com essas dúvidas legítimas, mas também com a certeza de que queremos alcançar esse suposto estado de plenitude emocional. Tendo em conta esse desejo, todos os anos a ONU divulga o Relatório Mundial da Felicidade, cuja edição mais recente coloca Portugal no 58.º lugar, longe da maioria dos países europeus. Para Fernando Lima Magalhães, psicólogo e psicoterapeuta, essa posição do ranking «reflete uma maneira de estar dos portugueses que favorece hábitos de pensar que potenciam o pessimismo». Para o especialista, «habita entre os portugueses um fado que atrai crenças negativas que possibilitam cenários de insatisfação». No entanto, defende, «isso pode ser contrariado ao ganhar consciência de novos hábitos que ajudem a identificar padrões emocionais e distorções negativas, procurando desconstruí-los e alterá-los, pois, apenas assim, abrimos caminho à felicidade».
«A ciência identifica fatores comuns entre os mais felizes, como, por exemplo, investir nas relações sociais, familiares ou de amizade, em detrimento da aquisição de bens materiais»
Ser feliz é algo que todos perseguimos. Mas consegue-se definir o conceito de felicidade?
Naturalmente, a felicidade é um conceito individual, uma construção pela vida fora pois não existe uma receita universal para o atingir. Resulta do “cultivo” de fatores como a autoaceitação e a autoestima, do desenvolvimento do seu potencial, do desfrutar de atividades que dão prazer, questões que elevam a probabilidade de ser feliz, já que trabalham traços positivos que nos trazem satisfação. Mas, como, enquanto indivíduos, temos variáveis que apenas são desenvolvidas ao explorar o autoconhecimento, a felicidade pode ser difícil de explicar e entender.
Esse sentido mais subjetivo pode dificultar atingir a referida plenitude emocional?
Depende da definição de cada um. O que sabemos é que a ciência identifica fatores comuns entre os mais felizes, como, por exemplo, investir nas relações sociais, familiares ou de amizade, em detrimento da aquisição de bens materiais. Esse sentimento de se conectar com o outro gera harmonia e potencia um círculo vicioso positivo, levando-nos a privilegiar o que nos satisfaz e a ficar mais dispostos a dar o melhor de nós.
«As pessoas mais felizes têm, por norma, ocupações ou propósitos que as transcendem, como a dedicação a causas sociais e de solidariedade»
No livro Como Ser Feliz, defende que «a felicidade é o resultado do processo de compreender e cultivar os fatores que a favorecem ao longo da vida». Que fatores refere?
Acima de tudo, as relações sociais e atividades que tragam sentimentos positivos e que signifiquem que a vida, no todo, vale a pena. As pessoas mais felizes têm, por norma, ocupações ou propósitos que as transcendem, como a dedicação a causas sociais e de solidariedade. Essa filosofia altruísta gera um boom emocional positivo, sendo também por isso que quem é mais feliz manifesta comportamentos que sublinham a bondade e gratidão. Mas a felicidade pode também estar à distância de um passeio na Natureza, ler um livro. Esses atos simples são poderosos, mas, para se retirar deles o devido proveito, é essencial ser realista.
Portanto, ter expectativas moderadas torna possível viver feliz a maior parte do tempo?
Essa é uma das maiores lutas que tenho em consulta, pois muitas das pessoas que acompanho estão amarradas à ilusão de uma certa indústria de coaching que afirma que podemos conseguir tudo só por pensar nisso e que é possível estar sempre feliz. Além de irrealista, isso é perigoso pois, quando não se atinge esse nível permanente de felicidade, gera-se ainda mais frustração. Por outro lado, ter expectativas moderadas torna a sua realização mais fácil pois são objetivos que estão ao nosso alcance. Erradamente, muitos pensam só serem felizes se forem ricos. Essa relação entre felicidade e materialismo é tóxica, pois estamos a adiar a felicidade até essa hipotética e quase impossível concretização, o que gera mais pessimismo, perpetuando esse ciclo, quando aquilo que se pretende é que se faça uma gestão assertiva dessa negatividade pela construção mais otimista da realidade. A ideia é sempre ajudar a ter noção de que existem obstáculos e como podemos ultrapassá-los sem a tentação de desistir.
Nesse sentido, tentar ser (mais) feliz é uma forma de aprendizagem enquanto ser humano…
Sem dúvida, pois é sinónimo de expandir o conhecimento e alargar os horizontes sobre o mundo. Ou seja, é sempre positivo sentir que estamos com abertura para novas possibilidades e experiências, sendo esse “crescimento” um dos motores da felicidade do ponto de vista da autonomia e desenvolvimento pessoal.
Ainda com o foco na aprendizagem, e voltando ao livro, refere que «as crenças (tóxicas) adquiridas na infância podem condicionar a ideia de felicidade». Que crenças são essas e como combatê-las?
São ideias com influência na formação de uma personalidade equilibrada e podem “minar” a ideia da felicidade. Um dos exemplos mais comuns é a tentação de evitar o contacto social por se ter baixa autoestima e uma imagem negativa de si próprio. O medo do confronto, de rejeição, condiciona um eventual estado de felicidade. Nesse caso, o desafio é moderar essa crença tornando-a neutra, aceitando a rejeição como algo natural a todos. Ao romper com essa negatividade, ficamos mais abertos aos outros, criamos laços e estaremos mais perto de ser feliz.
«Para muitos a pandemia ajudou a perceber que se pode viver de forma mais simples e frugal, retirando felicidade disso»
Existe uma relação direta entre uma infância difícil e ser um adulto pouco feliz?
Não será linear, mas pode acontecer. Ainda assim, em qualquer momento da vida, podemos mudar esquemas de pensamento ou crenças pessimistas que aprendemos na infância, mesmo face a uma educação negativa ou negligente, sendo o propósito transformar essas conceções mais íntimas em interpretações mais realistas e otimistas, com compaixão sobre nós e em relação aos outros.
Durante a vida, é inevitável ter de lidar com momentos menos bons. Como criar resiliência para ultrapassar essas fases?
Persistindo numa leitura otimista da realidade, aceitando as desilusões e perdas como experiências que potenciam aprendizagens e resiliência, pois compreender como lidar com a tristeza dá maior confiança para enfrentar emoções negativas. Um dos grandes entraves desse processo é não conseguir deixar de “ruminar” um acontecimento negativo. A ideia é aceitar o presente de forma pacífica, pois isso é sinónimo de seguir em frente, de evoluir.
Mas, quando o presente é viver em pandemia, entre constrangimentos sociais e confinamentos, o cenário pode complicar. A atual conjuntura tem potenciado um cenário de pessimismo?
Paradoxalmente, em média não, e recentemente saiu um estudo que indica o contrário. Segundo essa investigação, e mesmo perante a incerteza económica e social, para muitos a pandemia ajudou a perceber que se pode viver de forma mais simples e frugal, retirando felicidade disso. Ou seja, a ameaça COVID-19 serviu para valorizar mais o presente e dar a real importância às relações sociais, amizade, amor ou liberdade, fatores associados ao conceito de felicidade, apesar de ter afligido muitas pessoas.
Alguns estudos revelam que há pessoas com medo de ser felizes, vivendo numa constante autossabotagem emocional. Acompanha muitos clientes que passam por essa experiência?
Sim, e isso acontece por receio do descontrolo psicológico de tentar e não atingir a felicidade. Por exemplo, as pessoas que estão deprimidas vivem numa permanente visão negativa do mundo e delas próprias, o que dá a sensação de ser impossível libertar-se desse registo, desistindo de sair desse sufoco emocional. É como se o cérebro se convença da própria tristeza. Ou seja, se se vivem momentos negativos, o normal é que os pensamentos mantenham essa linha, boicotando o que pode tornar-nos mais felizes, e isso é altamente viciante.
«Uma das armadilhas para atingir a felicidade é esperar pelo futuro “perfeito”, seja ter mais dinheiro, perder peso ou ter mais filhos, mas isso não existe, pois o que deve ser feito é dar prioridade ao aqui e agora», defende Fernando Lima Magalhães
Essa incapacidade de ser feliz pode ser assumida como um fracasso pessoal?
Claro, pois a pessoa não se sente capaz de ultrapassar esses momentos e fazer o que seria melhor para si. É como uma “profecia” que leva a acreditar quando algo de mau pode acontecer isso concretiza-se, alimentando essa sensação de fracasso, armadilhando qualquer hipótese de ser feliz.
Quais são os maiores inimigos da felicidade?
Acima de tudo, acreditar que é o sucesso material ou a fama que nos faz felizes. Na realidade, o cérebro emocional não se interessa por dinheiro ou likes, mas sim por experiências positivas e boas conceções sociais. É claro que é essencial satisfazer as necessidades básicas, seja ter um ordenado, uma casa e saúde, mas, acima disso, a felicidade pouco ou nada aumenta. É por isso que os milionários não são as pessoas mais felizes do mundo.
Da sua experiência em consultório, sente que as pessoas são hoje mais ou menos felizes do que quando começou a exercer?
Sinto, e as estatísticas confirmam, que hoje são mais felizes e há maior noção de que ser feliz não resulta muitas vezes das escolhas mais óbvias, mas sim de um maior autoconhecimento. Isto porque existe maior consciência de que a felicidade está mais perto de uma vida simples, com significado e boas relações, como também o respeito pelo meio ambiente, de apreciar a beleza e de exercitar as forças de carácter, do que viver numa mansão ou ter um carro de alta cilindrada.
Quais foram as pessoas mais felizes que conheceu e o que tinham em comum?
A capacidade de viver no presente, não exigindo nada em especial, aceitando a vida. São pessoas que se sentem bem por ter uma tarde livre com a família ou telefonar a um amigo. Essa simplicidade ocupa positivamente a sua memória e, tendo em conta o somatório das suas experiências, sentem a satisfação de uma vida boa, plena e feliz.
7 regras para ser feliz
Fernando Lima Magalhães, psicólogo, partilha estratégias que proporcionam mudanças positivas na vida.
- Tenha expectativas realistas. «Não é possível controlar todos os pensamentos, mas pode-se fazê-lo de forma maioritariamente positiva. Lembre-se: pode ser feliz boa parte do tempo, não sempre.»
- Evite desculpas que impedem a mudança. «Viva o momento presente, rejeitando a ideia de não conseguir um objetivo devido a experiências anteriores.»
- Reconheça que as mudanças têm avanços e recuos. «Há dias em que se sente desmoralizado e cansado, noutros está feliz. Só a boa gestão desse equilíbrio potencia o bem-estar.»
- Aceite que a mudança é gradual. «Pensar de forma mais positiva é como emagrecer: ninguém perde o peso que quer numa semana, mas, se persistir vai conseguir.»
- Rejeite a catastrofização. «Evite prestar mais atenção aos pormenores que assume como negativos, desvalorizando os positivos. Esse “filtro” distorce a realidade.»
- Combata a emocionalização. «Não leve muito a sério tudo o que está a sentir e centre-se nos factos, evitando interpretações que levam ao sofrimento.»
- Pratique o altruísmo. «Apostar na solidariedade e ajudar o próximo potenciam a felicidade e o sentimento de pertença.»
Psicologia cognitiva: o que é
«Além de um aliado na prática clínica, a psicologia cognitiva estuda os padrões de pensamento, como interpretamos o mundo e conseguimos que o somatório de experiências ajude a construir sensações e emoções mais ou menos agradáveis», explica o psicólogo Fernando Lima Magalhães. «Quando isso não acontece de forma assertiva, ficamos à mercê das disfunções de pensamento e tornamo-nos mais negativos.»
- Interpretação positiva do mundo «Para contrariar esse cenário, a psicologia cognitiva ensina a entender os acontecimentos de forma mais realista, moderada e flexível, e, assim, a construir o nosso “patamar” de felicidade. A ideia não é pensar sempre de forma feliz, mas considerar a possibilidade do melhor e pior de uma situação, com uma orientação construtiva. Esta é uma forma honesta de ver a realidade, rejeitando a ideia tóxica de pensar que tudo vai correr sempre bem.»